Considerações sobre um “estranho” na série Adolescência - Psicanalise e audiovisual
- Leonardo Goncalves wild
- 31 de mai.
- 11 min de leitura

A série Adolescência (2025) encontra em seu vocativo uma forte síntese do que ela representará, ali se trata de um recorte específico do nosso laço social. A invenção do quer que venha a ser adolescência é um processo relativamente moderno, amplamente relacionado à invenção da noção de infância e de adulto — sendo assim, não estamos falando de algo intrinsecamente natural, mas sim de uma ficção social do que possa ser esse sujeito denominado “adolescente”.
Enquanto espécie — se é que assim podemos chamar esse agrupamento maior de sujeitos — nunca existiu, a priori, uma delimitação objetiva de tempo, idade e dos marcos anatomofisiológico, que definiriam o que cada fase da vida representaria. Isso vai sendo delimitado gradativamente, tanto social quanto no campo das ciências - Esses pressupostos deterministas frequentemente tomados como intrínsecos, são, na verdade, construções coletivas e historicamente situadas. São pactos sociais civilizatórios que nos organizam em um “chão de realidade” comum, apostando em certa previsibilidade e entendimento sobre o que se espera de cada sujeito, em determinada etapa da vida.
Nesse contexto, é importante destacar a construção da infância, da juventude e a criação do sistema educacional tal como o entendemos hoje. Esses aspectos não existiam antes do século XVIII, período em que a criança era considerada um “adulto em miniatura”. Com isso, também não existia uma noção de escola semelhante à que conhecemos, com estruturas específicas voltadas ao ensino-aprendizagem em diferentes idades.
Avançando para o século XX, Jacques Lacan, em seu texto “O Estádio do Espelho” (1949), propõe uma leitura provocativa sobre o nascimento, definindo-o como a chegada de um bife com olhos — uma carne viva que vai se subjetivando na medida em que é inscrita por outros, no laço social, por meio da linguagem. Esta tese lacaniana evidencia a dependência radical do sujeito em relação ao outro para constituir-se.
É nesse sentido que a série Adolescência oferece um recorte de um período específico da vida: a adolescência. De acordo com a psicologia do desenvolvimento — e também no sentido do imaginário social — essa fase é marcada por um processo de tentativa de diferenciação de uma identidade familiar, somado a criação e a procura de novos grupos de identificatórios, que hipoteticamente teriam mais haver com o sujeito nessa novo periodo.
A adolescência passa, então, a ser um território de criação, onde surgem mudanças de estilos, amizades, interesses, alterações hormonais, vivências sexuais e uma demanda de reconhecimento dessa subjetividade, que quer ser “atualizada” em parte pelo outro, (aqui esse outro sendo aquele de sua idade ou das gerações que o precederam)
A série evidencia com intensidade essa tensão geracional do que é infância, adolescência e adulto, revelando assim uma crise comunicacional entre gerações. A adolescência, ao buscar se diferenciar dos que vieram antes, inevitavelmente se ancora neles para estruturar essa mesma diferenciação. Essa dinâmica aparece, por exemplo, na linguagem oral/escrita: surgem novas gírias, expressões e regras dialéticas que identificam um grupo local-temporal, funcionando tanto como vínculo quanto como resistência.
No entanto, Adolescência nos faz lembrar que o presente momento possui uma ruptura inédita: a geração dos nativos digitais. Essa juventude nasceu em um mundo conectado — de celulares, tablets, redes sociais — e vive, sente e se expressa de forma distinta das gerações anteriores, além de operarem em uma lógica mais “on demand” ou em "tempo real”. Isso exige uma atenção especial ao modo como a linguagem é estruturada socialmente.
A forma como os sujeitos se afetam, comunicam o que os afetam e são reconhecidos por esse afeto, está diretamente ligada à estrutura da linguagem de sua época. Em outras palavras, existe uma verdadeira gramática do sofrimento que se transforma à medida que a linguagem se modifica. Essa é uma chave importante para compreender os modos de expressão e dor presentes nas novas gerações, marcada por uma nova gramática e estruturada na urgência de "tudo para ontem".
Nesse cenário, gostaria de destacar o segundo episódio da série, que acompanha um casal de policiais entrando em uma escola para investigar o que teria levado um jovem de 13 anos a cometer um assasinato. À medida que a narrativa avança, os policiais se deparam com um universo mais complexo do que esperavam: a multiplicidade de expressões — estudantes, professores, administração — vai revelando camadas de complexidade que escapam aos policiais e oas espectadores da série, resta acompanhar silenciosamente a angústia crescente dos personagens.

Essa sensação de que “algo escapa”, e retorna, pode ser vista em Freud, no texto O Inquietante (também traduzido como O Estranho ou O Infamiliar). Freud propõe que a inquietação surge do retorno de algo que havia sido reprimido ou esquecido,. Um fragmento “retorna” — mesmo que apenas como indício — provocando um estranhamento, uma inquietação.
Nesse episódio, um dos policiais descobre indícios de que seu próprio filho passa por um processo considerável de bullying, espelhando a trajetória do jovem que cometeu o assasinato. Isso gera uma sensação de inquietação, que para fins didáticos tento eu traduzir em possíveis perguntas que poderiam aparecer no imaginário do personagem e do espectador da série: “Será que sofrer X levaria à causa Y? Todo jovem seria capaz de agir da mesma forma? Será que algo que eu produzi é capaz de causar a destruição do outro?” - Ainda nesse sucedâneo de possíveis questões inquietantes, localiza-se a própria resistência do filho de ir a escola e dos pais que em momento algum da série questionam o motivo: “talvez algo além de “jovens não querem ir para a escola” esteja ocorrendo?””
As cenas seguintes intensificam o mal-estar. Professores e coordenadores agem de forma grosseira com os alunos, e isso desperta nos policiais — e também no espectador — mais estranhamento, que de igual modo aqui traduzo nas seguintes questões/indagações: “Estamos, nós, adultos, preparados para lidar com a agressividade? E se formos nós os primeiros a exercê-la, com que direito exigimos que os jovens não o façam?”
A tentativa de diálogo entre os policiais e os jovens gera ainda mais conflito. Uma garota se mostra desconfiada, agressiva; mais tarde, agride um colega e o acusa de ser responsável pela morte da amiga. — Outro jovem, inicialmente visto como irrelevante para o caso, acaba fugindo pela janela e sendo perseguido. — Ambos provocam desconforto nos adultos que, apesar de serem figuras de autoridade, mostram-se incapazes de escutar a angústia dos jovens e dialogar com eles; além de nomear ou lidar com o que está acontecendo.

Esses momentos ajudam a ilustrar o conceito freudiano do infamiliar. O ambiente escolar, supostamente familiar aos policiais, torna-se estranho — como se retornar a esse espaço já vivido, provocasse um tipo de deslocamento subjetivo. O conhecido se transforma em algo opaco, sem tradução direta, mas que suscita inquietação.
A série, se vale da imagética desses policiais para nos mostrar uma juventude que “é como a nossa”, mas que já não se deixa capturar tão facilmente pelas nossas categorias de entendimento do social. Isso gera um estranhamento não apenas nos personagens, mas também no espectador, principalmente ao observar figuras de autoridade perdidas diante das novas formas de expressões e subjetividades juvenis — muitas das quais circulam em espaços digitais, aos quais essas autoridades não têm acesso e entendimento. De novo. Ou mais uma vez, algo aqui escapa.
Em uma progressão sutil e incômoda, a série mostra professores agressivos, coordenadores solícitos, mas desorientados diante da linguagem jovem e, finalmente, os representantes da lei, desorientados.
Detenhamo-nos neste último grupo. A imagem dos dois policiais representa a mão da justiça, os braços do Estado, os agentes das normas civilizatórias. No entanto, mesmo essas figuras se mostram tão perdidas quanto qualquer outro adulto. O que torna tudo ainda mais inquietante é que, ao contrário dos demais profissionais da escola, os policiais não são apenas representantes de uma instituição local — teoricamente representam uma autoridade maior, que também está fracassando na apreensão das novas formas de linguagem.
A série dá a entender que os policiais se perdem diante do que estão ali vendo e do que aquilo parece suscitar neles. Um dos pontos de afeto que impactam os personagens (mesmo que isso não seja verbalizado, mas mostrado em cena) é o potencial agressivo que pode estar contido em diferentes espaços de uma escola. — Coloca-se em questão a própria agressividade de cada sujeito e seus possíveis destinos.
Quanto a isso, a série nos mostra a agressividade dos professores para com os alunos em forma de gritos; alunos gritando entre si, gritando com professores e brigando fisicamente. — A escola tem, em um dos seus fundamentos, o controle da agressividade dos estudantes. Assim como o sujeito chega ao mundo sem saber sobre si, tampouco sabe sobre as regras sociais e os destinos de suas excitações (aqui também incluída a agressividade).
Os agentes de ensino, além de transmitirem um desejo de saber mais, têm um papel e podem ocupar uma representação de expoentes que já aprenderam destinos possíveis, socialmente aceitos para seus afetos. Sendo assim, a escola representa em sua base algo que Freud fala em seu texto “O Mal-Estar na Civilização”, (1930) que, em determinada medida, todos sofrem com a repressão social.

Os policiais, que podem representam um tipo de repressão social corporificam os limites das leis do estado, podendo suscitar aos dirigentes, aos professores, aos aulos uma lei maior que todos estão sobe ela. Seriam eles por si uma representação / um lembrete da castração (de limite) e responsabilidade com seus atos. - Esses personagens ficam afetados com o que estão vendo, e isso é passado ao espectador por meio dos olhares, mas também em uma breve e potente conversa sobre a importância de existirem referências que encaminhem o jovem a fazer algo diferente de si. Os próprios policiais, em determinado momento do episódio, têm um diálogo curto e extremamente poderoso no poder de síntese do que aqui exponho:
— minha escola lembra essa
— e como você sobreviveu?
— eu tinha uma boa professora
Outro aspecto importante do segundo episódio é que, logo de início, ficamos sabendo que o policial que adentrará a escola, tem nela um filho, estudante dali. E, ao longo da trama, vamos vendo o quanto esse jovem sofre bullying verbal e físico, assim como a inquietação do pai que ao entrar nesse território fica cada vez mais inquieto com o que verifica, e vai tendo uma crescente preocupação com seu filho.
Nós, enquanto espectadores, facilmente somos levados a entender que esse pai, que ocupa uma função de policial/agente da lei, é tomado pelo medo de que o filho esteja a passar por violência ( e que, como pai, não tinha percebido embora o filho já houvesse dado indícios) — aspecto que ele não sabe ao certo, mas em determinado momento suspeita, ao ouvir um apelido que os jovens utilizam com seu filho —, mas que nós, espectadores, temos certeza de que tal violência ocorre, pois isso nos é mostrado inúmeras vezes.
Aqui temos mais uma vez o inquietante freudiano aparecendo, esse infamiliar de que o policial é acometido, um afeto sem nome, mas estranho e ao mesmo tempo íntimo. Afeto que, mais ao final do episódio, se desdobra na ação do policial convidando o filho para almoçar em uma tentativa de se aproximar dele. O policial desconhece mazelas da vida do filho, tal qual o pai do menino que supõe ter cometido um crime)
Aqui, neste texto, cabe destacar a função que esse jovem filho do policial terá. Em determinado momento, ele chama o pai para conversarem sozinhos, não na qualidade de uma parentalidade, mas dele enquanto policial. E é aí que temos um dos maiores choques do episódio: o jovem se dirige ao pai em função de Lei/Estado/Polícia e diz que eles não estão entendendo nada (a geração que veio antes), que existe toda uma linguagem, uma lógica outra para aquele universo e que, mesmo estando ali, isso os escapa — assim como escapa dos professores e de qualquer outro agente de ensino. A comunicação e a linguagem ali são outras, se valem e têm outros signos de fazer-se: emojis.
O jovem coloca ao pai que a comunicação desse grupo, dessa escola, ou até dessa geração, inclui uma tradução pictográfica que escapa a eles. Ambos abrem o Instagram e vão olhar alguns posts, e é nesse momento que o jovem introduz um pequeno dicionário de emojis e seus significados para aquele grupo. E assim desvela-se o tema da “masculinidade tóxica” (redpill), incel, (termo usado na série) sexualidade, violência e bullying — todos expressos por meio de emojis que todos podiam ver, mas somente um grupo específico, alguns que já haviam sido introduzidos nessa comunicação, poderiam dela apreender e avançar com a conversa.
No mínimo interessante esse momento da série — e aqui utilizo o “interessante” como algo que realmente é do nosso interesse. A cena de incredulidade do policial dura menos de dois minutos, mas é de uma complexa perda do “chão de realidade”, pois, como o próprio expõe: “eu não estou entendendo”. Ali se passa algo muito forte em termos de intensidade, pois como poderia alguém estar a ver algo sempre e perder tamanho espaço de significado compartilhado no que está vendo? É nisso que se funda uma das últimas cenas de estranho do segundo episódio: “como poderia eu estar sem noção do que se passa diante dos meus olhos? Justo eu que aqui estou como mais velho, como representante da Lei, preocupado com meu filho… mas é ele que me apresenta toda uma outra linguagem que me escapa e escapava a tantos outros?”
A sensação de que algo falta, que acompanha o policial durante todo o episódio, se desfaz diante desse jovem que codifica e possibilita sua entrada em um novo terreno discursivo. Os principais efeitos dessa “chave” de linguagem serão apresentados no terceiro episódio. — Mas, nesse segundo episódio, ainda nos encontramos com outra manifestação de limites. Um dos meninos da escola estava escondendo informações importantes para o caso, e, quando esse jovem é confrontado, eis que não existem mais palavras a serem ditas (modos de distrair os policiais). Diante disso, ele foge pela janela da sala de aula, e o policial o persegue. — Aqui destaco que, quando as palavras terminam, retorna-se ao ato real, e o limite se torna necessário para que se instale uma barreira simbólica, uma lei. Nesse caso, algo que traduzo como: “não, o garoto não tinha como mentir mais"; ele tenta fugir com o próprio corpo, e o policial o para e prende. E essa prisão pode ser entendida como uma tentativa de lembrar ao jovem que existe uma lei maior, existem limites dos quais ninguém deveria poder passar.
O episódio termina com uma jovem sozinha na rua, diante da perda de sua melhor amiga; o policial no carro com seu filho, convidando-o para comer, em uma clara tentativa de aproximação. E, após uma cena de sobrevoo da cidade (que pode ilustrar o quanto a ação de um adolescente pode varrer um povo), o episódio se encerra no estacionamento onde a menina foi assassinada, com o pai do jovem assassino colocando flores no local e a encarando de modo muito tenso — algo que beira o indizível — ao mesmo tempo em que convida todo espectador a pensar: “O que se passa com esse homem? Com esse pai?”

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Autor: Leonardo G Wild
Psicanalista, com graduação em psicologia. Trabalha com psicoses no Instituto Casa Do Todos, clínico presencial e online. Criador do podcast psicanalizando e do canal psicanalizando, ambos tendo como objetivo a transmissão da psicanálise lacaninana. Participou dos cursos e das discussões do grupo de transmissão e pesquisa em psicanálise do Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA)
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Meus mais sinceros e ternos agradecimentos para Karen Graziele Tavares e Jéssica Leite Barbosa pelo apoio, ajuda e correção na construção deste texto.
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Bibliografia:
Leandro De Lajonquiere - Figuras do Infantil. A Psicanálise na Vida Cotidiana com crianças - Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2010
Sigmund Freud - O Infamiliar. In: O O Infamiliar [Das Unheimliche] (Obras incompletas de Sigmund Freud). Belo Horizonte: Autêntica editora, 2019.
Sigmund Freud - O Estranho. In: Obras Completas, volume 14, História de uma neurose infantil : (“O homem dos lobos”) : além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) / Sigmund Freud; tradução e notas Paulo César de Souza — São Paulo: Com panhia das Letras, 2010.
Sigmund Freud Mal-estar na civilização [1930]. In: Cultura, sociedade, religião: o mal estar na cultura e outros escritos. (Obras incompletas de Sigmund Freud). Belo Horizonte: Autêntica editora, 2020, p. 305-405.
Jacques Lacan O seminário, livro 11: os quatros conceitos fundamentais da psicanálise [1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
Jaques Lacan O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. In.: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise [1953]. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Jacques Lacan O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise [1969-70]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.




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