O conceito de repetição em Freud e Lacan – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
- Lisiane Fachinetto

- 23 de jul. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 21 de nov.
O conceito de repetição
O conceito de “repetição” está referido à inércia, àquilo que sempre retorna como “se fosse do nada”
A repetição em Freud
Para tratar a respeito do conceito de repetição, recorro basicamente a dois textos de Freud, a saber: Recordar, repetir e elaborar (1914) e Além do princípio do prazer (1920).
No primeiro texto, o autor, a partir das observações de sua experiência clínica, contrapõe a repetição à recordação. Ele entende que “o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem naturalmente, saber que o está repetindo” (FREUD, 1914/1987, p. 196).
Assim, a repetição estaria do lado da atuação produzida por componentes psíquicos, os quais se atualizam na análise; enquanto a recordação está do lado da lembrança que pode ser lembrada, ou seja, o que pode ser lembrado é o que já está elaborado pelo sujeito. Nesse momento, Freud concebe que a repetição é uma maneira de recordar e que ela está a trabalho do princípio do prazer, o qual tem a função de reduzir a tensão, trata-se da inércia.
O que o paciente repete, segundo Freud (1914/1987, p. 198), são as “suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter. […] Repete também todos os seus sintomas, no decurso do tratamento”. Chamo a atenção para as atitudes inúteis, visto que Joana, no seu processo de escrita, em muitos momentos repete o ato de não enviar os arquivos para a orientadora, para que a mesma fizesse as intervenções no texto. Esse aspecto vai ser tratado com mais profundidade no capítulo II da segunda parte desta tese.
No texto Além do princípio do prazer, Freud (1920) se questiona a respeito da predominância ou não do princípio do prazer sobre a vida psíquica. Naquele momento da sua pesquisa, ele considera que nem todas as repetições responderiam ao princípio do prazer. Para essa consideração, o autor apresenta três fontes de inferência: a neurose de guerra, os sonhos traumáticos e os textos literários. Inicialmente assustado com esses fenômenos, atribui a eles um caráter demoníaco e os trata como sendo uma compulsão.
As manifestações de uma compulsão à repetição (que descrevemos como ocorrendo nas primeiras atividades da vida mental infantil, bem como entre os eventos do tratamento psicanalítico) apresentam em alto grau um caráter instintual e, quando atuam em oposição ao princípio de prazer, dão a aparência de alguma força ‘demoníaca’ em ação. (FREUD, 1920/1987, p. 15).
A partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Freud considera o trauma a figura central das neuroses traumáticas e as aproxima da neurose de guerra. Segundo o autor, nesse tipo de neurose o ego se defende de um perigo externo, enquanto que na neurose de transferência o inimigo é a própria libido do sujeito. Apesar de haver uma oposição entre a neurose de guerra e a neurose de transferência, o que ambas têm em comum é a presença de um elemento repetitivo que se impõe, por exemplo, sob a forma de pesadelo, além da vontade consciente do sujeito.
Freud conclui que o funcionamento do psiquismo leva à repetição de experiências traumáticas, o que o autor situa “para além do princípio do prazer”. No caso de minha informante, como já pontuado, esse processo se manifestava sob a forma de uma tendência repetitiva a esquecer-se de anexar arquivos que declarava desejar serem lidos.
No texto Escritores criativos e devaneio, Freud (1908 [1907]/1987) aproxima o processo de produção literária à brincadeira infantil. Segundo o autor, “O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade” (FREUD, 1908 [1907]/1987, p. 150). Freud (1920/1987) ao referir-se à brincadeira do “Fort- da” (desaparecimento e retorno) considera que a mesma está a serviço de um controle fantasístico da situação desagradável, no caso a saída da mãe, para que a criança consiga elaborar a perda da mãe. A interpretação dada pelo psicanalista a respeito dessa brincadeira é da ordem da renúncia pulsional. Nesse caso, a repetição trata-se de uma atualização do complexo edípico. Nesse sentido, afirma que
Mas como o predicado de ser ‘instintual’ se relaciona com a compulsão à repetição? Nesse ponto, não podemos fugir à suspeita de que deparamos com a trilha de um atributo universal dos instintos e talvez da vida orgânica em geral que até o presente não foi claramente identificado ou, pelo menos, não explicitamente acentuado. Parece, então que um instinto é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica. (FREUD, 1920/1987, p.25).
A compulsão à repetição pode se realizar na vida do sujeito independentemente do princípio do prazer, existe um além, um incômodo que sempre retorna. Freud a relaciona com a questão pulsional, mais especificamente a pulsão de morte. O autor já tinha feito uma relação entre as características pulsionais e a repetição no texto O Estranho (1919), mas ele ainda não tinha feito referência à pulsão de morte, o que só vai acontecer no texto de 1920.
O traçado do conceito da repetição em Lacan segue o mesmo padrão do traçado do conceito de inconsciente, ou seja, pode ser classificado quanto à maior predominância dos registros imaginário, simbólico e real. Dado o escopo deste trabalho, a elaboração a respeito da inércia do imaginário, trabalhada por meio da metáfora do espelho, não será alvo de atenção deste trabalho.
Vejamos dois tempos de elaboração a respeito da repetição simbólica. O primeiro pode ser encontrado no seminário sobre “A carta roubada”, em que Lacan comenta o conto de Edgar Allan Poe (LACAN, 1955/1998). Nesse texto, Lacan faz a tentativa de utilizar uma linguagem formal para explicar fenomenologicamente como os significantes se repetem. Segundo o autor, a sua pesquisa levou a seguinte consideração: “o automatismo de repetição (Wiederholungszwang) extrai seu princípio do que havíamos chamado de insistência da cadeia significante” (LACAN, 1955/1998, p.13), o que leva ao entendimento do aparecimento do sujeito do inconsciente.
O segundo pode ser examinado a partir do Seminário XI (1964/1998), no qual, paralelamente ao seu interesse pela Linguística, Lacan passa, também, a interessar-se pela lógica e pela matemática, mais especificamente pela teoria dos conjuntos. Dessa teoria, Lacan retira a noção de vel para sua elaboração teórica. Se até então a lógica pensava em vel exaustivo e inclusivo, o autor pensa em vel da reunião, cuja característica é a de que qualquer que seja a escolha do sujeito, essa sempre implicará em uma perda. O diagrama abaixo ilustra o chamado vel da alienação.

A figura foi montada a partir de dois círculos sobrepostos, em que se forma um campo de intersecção, onde se lê o não-senso, campo comum entre o sujeito (O ser, representado por meio do círculo do lado esquerdo) e o sentido (o Outro, representado por meio do círculo do lado direito). Explicando a lúnula formada pela sobreposição dos campos, Lacan diz que se trata do lugar do objeto pequeno a, isto é, o campo da falta por excelência.
A repetição, portanto, é explicada a partir desse vel, o “ou” exclusivo que leva cada um de nós a ter de escolher, a cada momento, entre o sentido (igual para todos) e o seu ser (potencialmente único). Assim, ao longo de uma vida, todos alternam momentos de alienação, no qual se submetem às interpretações de senso comum para dar nome às coisas, e de separação, na qual abandonam os nomes previamente pactuados para inventar novas formas de ver o mundo. Entre os dois momentos, Lacan localiza o instante de perplexidade que se impõe ao sujeito quando, no instante anterior à invenção, as coisas já deixaram de ter sentido.
Quando uma coisa não tem sentido, ela insiste para vir a ser significada. A repetição é explicada como tendo sido causada pela impossibilidade de simbolizar um x. É uma radicalização da teoria do trauma freudiano. Na repetição, existe algo que possui a mesma forma, significantes que foram fixados no trauma, e que aparece em outra cena numa tentativa de significação. O autor aproxima a repetição da noção de resistência, “a resistência do sujeito que se torna, nesse momento, repetição em ato” (LACAN,1964/1998, p.53).
Também o conceito de repetição passa a ser trabalhado na vertente predominantemente real a partir do Seminário XX, quando o psicanalista francês correlaciona à premência de uma forte sensação corporal que tende a se recolocar. Um exemplo disso é a insistência da criança pequena de descer no escorregador inúmeras vezes, sem se decidir a abrir mão desse prazer.
Na sua última formulação, o autor toma a repetição do real, portanto, como análoga à presença irredutível do corpo do sujeito. Essa presença é vista como sendo fonte da criatividade, do estilo. Cada um tem um elemento duro, impossível de ser erradicado, que sempre comparece e pode servir de matéria prima para suas criações.
Para saber mais acesse: https://www.espacolacaniano.com.br/curso




Comentários