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Psicanálise e sintoma social – Delinquencia e maus-tratos: uma questão de filiação

Atualizado: 22 de mar.

Clínica do social, que clínica é essa?


Este texto trata de uma questão bem particular dentro do tema, Delinquência e maus-tratos, que é a questão dos meninos de rua, a partir de um projeto, cujo objetivo era tirar o menino de rua da rua.


Este projeto foi elaborado a partir de um trabalho que uma estagiária de Serviço Social desenvolvia junto aos meninos que perambulavam pelas ruas. No decorrer deste trabalho, muitas questões com relação ao que levava esse menino a “optar” pela rua resultaram na formação de uma equipe multidisciplinar, com o intuito de dar conta deste sintoma social. Proponho, a partir de alguns recortes deste trabalho, uma reflexão acerca da delinquência.


Interrogações sobre o que levava o menino de rua a cometer o ato delinquente, a transgredir a lei e como ele a fazia, permearam o trabalho. A equipe se deparou muitas vezes com a repetição dos atos delinquentes dos meninos. Frente à repetição destes atos coloco uma questão: no ato delinquente, trata-se de uma tentativa de reconhecimento? Segundo Melman (1992), o que caracteriza a delinquência é que o acesso ao objeto é organizado não pelo símbolo, que é comum de todos os neuróticos, mas pela apreensão, pelo rapto; e o valor está justamente na condição de ser raptado. Uma questão que se coloca é quanto à relação do delinquente com o objeto, se trata de uma relação dual ou se é uma relação ternária. Para Melman, a relação não é dual, mas se funda na anulação do terceiro; este pai, na medida em que por seu ato, ou sua ação, o delinquente o reduz à impotência, o deixa cego, testemunhando-lhe que ali ele nada pode. E assinala como causa da delinquência a falta de reconhecimento simbólico do

Nome-do-Pai, ou seja, o declínio da função paterna.


A partir da nossa hipótese, do ato delinquente ser uma busca de filiação, de um reconhecimento, nos deparamos com o fracasso desta, pois a busca é a de um objeto simbólico. As condutas do delinquente são simbólicas de uma falta essencial, uma vez que é a falta de acesso ao objeto que comanda o gozo, isto é, o falo. A experiência nos prova que o pai, considerado como aquele que priva a mãe deste objeto, essencialmente do objeto fálico de seu desejo, desempenha um papel absolutamente essencial em todo o transcurso, seja ele o mais fácil, o mais normal, o complexo de Édipo. A partir da concepção lacaniana de complexo de Édipo, poderíamos pensar que o delinquente se encontra no segundo momento do Édipo, onde a entrada da função paterna é vivida sob forma de privação.


Lacan (1992) coloca quanto à falta do objeto, três possibilidades: a privação, a frustração e a castração. A falta do objeto na privação é real, designa esta falta de objeto como um buraco no real; contudo, o objeto da privação é um objeto simbólico. Buraco no real; contudo, o objeto da privação e um objeto simbólico. O delinquente não teria chegado a simbolizar a lei, assim, sem uma determinação do lugar exato do desejo da mãe. A função paterna só é representativa da lei sob a condição da determinação do lugar do desejo da mãe. O delinquente, segundo Melman (1992), na medida em que está incapacitado de reivindicar um pai simbólico, seja ele de origem ou de adoção, e que não pode, em hipótese alguma se atribuir as insígnias desse pai, não terá outro recurso senão o de passar ao ato; e buscá-lo ele mesmos, isto é, roubá-la. Os atos cometidos pelos delinquentes são, na sua maioria, altamente simbólicos.


Neste momento, gostaria de relatar a vocês um episódio que presenciei no trabalho com os meninos de rua. O projeto da instituição atendia os meninos, durante o dia, com várias atividades, e com uma equipe multidisciplinar (assistente social, recreacionista, pedagogo, psicólogo e enfermeiro). A rotina de trabalho começava com o café da manhã, seguia com atividades junto aos profissionais, o almoço, retorno das atividades com a equipe e, no final da tarde, estavam novamente na rua, com a possibilidade de dormirem no albergue municipal. No entanto, um dia, a rotina foi um pouco diferente. Dois dos meninos permaneceram na instituição após o encerramento das atividades e ninguém notou a presença deles, porém, no dia seguinte, essa presença foi notada. Dentro do prédio ficavam os carros, camionetes e a própria ambulância da instituição, lugar ideal para uma aula de direção. O mais velho, dezesseis anos e líder do grupo, se prontificou a ensinar um dos meninos. Mas, naquelas manobras, eles acabaram estragando algumas coisas no Interior do prédio. Na manhã seguinte, foi aquele estardalhaço no momento da chegada dos funcionários à instituição, pois eles encontraram várias paredes divisórias derrubadas, materiais estragados, etc.   O procedimento do grupo de funcionários foi exigir uma posição da coordenadora do projeto, pois quem poderia ter feito aquilo, senão os meninos? A atitude tomada foi convocar uma assembléia geral com os meninos, a equipe multidisciplinar e a coordenação do projeto. Nessa assembleia foi questionado o qual dos meninos fizera aquele estrago e o porquê do ato.


O recorte que faço desta história trata-se do “por que vocês fizeram isso comigo, ia que eu me proposto a fazer um trabalho com vocês, eu dou tudo, a comida, os profissionais, a casa e o albergue para vocês dormirem,” a partir do qual proponho trabalhar a questão do dom e da dádiva. Mauss (1981) coloca que um dom engaja, onde aquele que se despoja de tudo que tem é o que mais vale. Nesta concepção, os laços que estruturam a sociedade são simbólicos, o que permite atos reais. Coloco em questão o tipo de dom que se deu nesse trabalho com os meninos, analisando os tipos de trocas existentes na estrutura social vigente. Abordo, neste momento, um tipo de troca na nossa sociedade, que por sua vez está intimamente ligado a este sintoma social nomeado meninos de rua. A sociedade paga impostos ao governo, que por sua vez exige garantias; uma delas é a garantia da segurança. Então, o Estado tem que dar conta desta segurança. No entanto, existem meninos por aí, em frente de shopping centers molestando a sociedade. O Estado, para tirá-los deste lugar, encarna a lei ao invés de representá-la. Isso fica evidente a partir dos relatos dos meninos quanto à ação da polícia.


A seguir, apresento um trecho de um relato: “Estávamos dormindo numa calçada, ali no centro, quando a gente viu, tinha uns policial que começaram a jogar aquele pó do extintor em nós. De manhã que a gente foi ver que a gente tava todo queimado, na cara, braço, barriga, tudo.” Isso aponta para uma questão: eles têm que aprender na “porrada”, ou seja, eles têm que aprender a partir do ato. Há uma inversão quanto à entrada da lei, a polícia ao invés de representar a lei, ela a encarna e isso tem consequências diretas nas relaçoes sociais.


Retornando aos ditos trazidos pela equipe, comecei a observar o que se dava aos meninos a partir do dito: “eu dou tudo e não recebo nada”. A comida que era fornecida já estava em estado de putrefação, pois esses alimentos eram donativos que ficavam no depósito desta instituição até serem repassados. Então era comum escutar dos meninos o seguinte: “mas eu tenho que comer isso? Tá estragado.” Isso me fez pensar no dom, eu dou o que eu tenho, eu tenho lixo, foi o que sobrou para ti. E esse dom é dado para um outro lixo, este considerado pela sociedade, ou seja, lixo para lixo. Os meninos pernoitavam no albergue municipal, uma casa que para os meninos não representava um referencial. Dar, quanto mais se dava, eles mais queriam, como eles buscam um objeto simbólico e não o tem, a repetição ocorre nesta busca frenética de algo. Por outro lado, existe alguém pronto a dar qualquer coisa, porque afinal ele, o menino, quer qualquer objeto, e não sabe o que quer. Com isso podemos dizer que muitos interesses compactuam no sentido de manter esse sintoma.


Lacan aponta uma mudança quanto à questão da estrutura social, ele fala que a estrutura social, enquanto simbólica, nos permite, assim, condutas reais. Quando as estruturas sociais se tornam reais as condutas são simbólicas. Com isso coloco em questão que dom é esse que engaja, que se dá, e que os meninos rejeitam com violência. Que violência é essa, de onde vem essa violência? Quem está agredindo quem, e como cada um, dentro do coletivo, está respondendo a essa demanda? Pensar sobre a situação do menino de rua no Brasil, nos remete a repensar o tipo de relação social que vivemos hoje.



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Bibliografia

Jaques Lacan. As Formações do inconsciente. Seminários 1957/1958, inédito.


Jaques Lacan. A Relação de Objeto e as Estruturas Freudianas. Porto Alegre: APPOA, 1992


Marcelo Mauss. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981


Marcelo Mauss. Alcoolismo, Deliquencia, Toximania. Uma Outra Forma de Gozar

São Paulo: Escuta , 1992


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Originalmente publicado em: Psicanálise e sintoma social I / Organização de Mario Fleig – São Leopoldo, Ed. UNISINOS, 1993, v. 1, p. 94/97


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