Psicanálise e sintoma social – Clínica do social, que clínica é essa?
- Lisiane Fachinetto

- 1 de nov. de 2024
- 8 min de leitura
Atualizado: 22 de mar.
Clínica do social, que clínica é essa?
Em primeiro lugar, gostaria de dizer que o nome desta Jornada Psicanálise e Sintoma Social me convoca, pois a questão que levanto “Clínica do social, que clínica é essa?” diz de uma trajetória construída a partir de interrogações disso que denominamos de cultura. Considero este espaço importante, pois ele me permitiu avançar num trabalho iniciado na | Jornada de Psicanálise e Sintoma Social. A partir de alguns recortes de uma proposta de trabalho multidisciplinar, tratei de um tema bem particular, o sintoma social denominado menino de rua e, naquele momento, discutíamos se a delinquência poderia se tratar como uma busca fracassada de uma filiação. Acho pertinente trazer a questão que apresentei no final daquele texto, que diz respeito ao dom, que dom é este que engaja os meninos e que os mesmos rejeitam com violência? Por onde se dá o enlace do sujeito no fluxo discursivo, e quais as implicações desse enlace na cultura?
Abordar esta questão decorre da escuta que tenho feito na clínica e em algumas comunidades há algum tempo. Essa prática tem me incitado a interrogar sobre o que seja uma clínica do social. A vida em grupo, no decorrer dos tempos, apontou algumas questões, como o sofrimento e a angústia em função da interdição imposta pela vida em comunidade. A busca da felicidade plena e a impossibilidade da mesma nos faz questão, assim, frente a ela buscamos respostas, e nesta busca muitos gozos vão se inscrevendo na vida cotidiana, onde a singularidade do sujeito aparece e marca o tecido social, o qual nos perpassa.
O processo civilizatório constitui um campo vastíssin0 de investigação para a psicanálise, desde o caminho do desenvolvimento individual ate a vida em grupo, pois se não há laço, não há sujeito. Onde a prática psicanalítica é uma forma de estar implicado no social, mal-estar social.
A teoria freudiana descortina o desenvolvimento individual e aponta algumas questões importantes no que diz respeito à vida em grupo. Freud, em “Psicologia das massas e análise do eu, coloca que, “embora a psicologia de grupo ainda se encontre em sua infância, ela abrange imenso número de temas independentes e oferece aos investigadores incontáveis problemas que até o momento nem foram corretamente distinguidos uns dos outros. A mera classificação das diferentes formas de formação de grupo e a descrição de fenômenos mentais por elas produzidos exigem grande dispêndio de observação e exposição.” (1921, p. 93). Como poderíamos pensar, a partir do que Freud apontou sobre a cultura, uma prática discursiva no social? Quais os caminhos a serem tomados na investigação das formações de massa que mascaram o desejo? Trata-se de uma extensão dos conceitos psicanalíticos na leitura dos fenômenos sociais ou está para além da psicanálise aplicada? Freud, desde 1915, já colocava que a transmissão dos conceitos da psicanálise não produzia efeito analítico nenhum, a mera aplicação dos conceitos psicanalíticos produziriam efeitos de compreensão dos fenômenos sociais, e para isso estão aí a sociologia, a antropologia, etc.
Para pensarmos a possibilidade de uma clínica do social, ou o que seja uma clínica do social, propomos trazer para a discussão dois tipos de clínica: a clínica médica e a clínica psicanalítica. Com referência à clínica médica, consideramos importante falar sobre as diferentes formas como a loucura foi concebida no decorrer do tempo a partir de Foucault. Antes do século XVIII, a loucura era considerada como uma forma de erro ou de ilusão, ela não era sistematicamente internada. Como a loucura era concebida como parte da natureza, ela mesma tinha o poder de dissipar o erro. Assim as medidas terapêuticas adotadas pelo médico eram aconselhar o paciente a viajar, fazer um corte com o mundo vão e artificial da Cidade. Também era considerado como lugar terapêutico o teatro, natureza invertida. No final do século XVIII, começo do século XIX, a loucura está associada à desordem, ela é percebida menos em relação ao erro do que em relação à conduta regular e normal. A desordem na maneira de agir, de querer, de sentir paixões, de tomar decisões e de ser livre são expressões que a loucura toma. É o momento de Houffbauer e Esquirol e a mudança do eixo, em vez de a loucura ser inscrita no eixo verdade – erro – consciência, ela se inscreve no eixo paixão – vontade – liberdade. O século XX é marcado por sua concepção de doença mental ligada a padrões de normalidade, à questão moral e à exclusão do louco da sociedade. A função do hospital psiquiátrico dos séculos XIX e XX é diagnosticar e classificar, um retângulo botânico, onde as espécies de doenças são divididas em compartimentos, cuja disposição lembra uma vasta horta. Também um espaço para um confronto, lugar de uma dispu-ta, campo institucional onde se trata de vitória e de submissão. A psiquiatria tem a concepção de que a doença mental esconde uma verdade e sustenta seu trabalho na constatação dessa verdade. Para dar conta desse desconhecido, a doença mental, o médico tem uma ação direta sobre a doença; não só lhe não permite revelar a sua verdade aos olhos do médico, como também produzi-la. Sobre a questão médica, Lacan referencia o discurso médico como aquele que se intitula produtor do saber: O discurso médico prima por excluir a subjetividade tanto daquele que o enuncia como daquele que o escuta, assim não existe relação médico – doente, porque tanto o médico quanto o doente encontram-se excluídos das posições subjetivas, e a relação se dá entre as instituições médica e doença.
Então, a psiquiatria começa o tratamento assujeitando o indivíduo, ou seja, retira a subjetividade do mesmo. E esse procedimento é explicitado no momento em que o hospital psiquiátrico exige que seus pacientes usem um uniforme; ou seja, joga o sujeito na massa. Essa massa é classificada por diagnósticos, cada quadro clínico é separado de acordo com as especificidades da doença. A prática psiquiátrica está calcada nas relações de poder, e estas condicionam O funcionamento asilar, estabelecem como se dão as relações entre os sujeitos e também a forma de intervenção. Desqualifica o doente nomeando-o como louco, o qual não tem poder nem saber sobre a seu sofrimento. A cura para a clínica psiquiátrica reside na extirpação do sintoma, ou seja, o caminho da cura é da ordem do desaparecimento do sintoma.
A clínica psicanalítica, por sua vez, não conhece do sujeito senão a sua falta de ser, onde a linguagem possibilita, a partir do discurso, que o sujeito fale do seu sofrimento, e aí inscreve-se a sua singularidade. Para a psicanálise, o sintoma não é tomado como algo que tenha que ser extirpado, mas a formação do sintoma é entendida como algo da ordem de uma formação substitutiva de realização de desejo, a qual tem como finalidade encobrir a falta. Ou seja, só se pode mostrar velando. O sintoma é um signo e tem um significado original para cada paciente; poderíamos dizer que se trata de um dialeto individual do paciente.
Trazemos uma citação de Octavio de Souza: “A psicanálise se propõe a reduzir o sintoma, revelando os processos inconscientes que o produzem. Assim, o sintoma é considerado uma formação do inconsciente, e, portanto, uma realização de desejo, na medida em que o desejo é a única força capaz de motivar o inconsciente. Todo desejo sendo sustentado por uma fantasia, permitam-me o esquematismo, não há abordagem possível do sintoma pela psicanálise sem que pelo menos um esboço de reconstrução da fantasia do inconsciente que está por trás do sintoma efetuado pelo sujeito.”(1991, p. 81)
Essa fantasia do inconsciente é uma tentativa de tamponar a falta. Se há sintoma, há conflito, onde o sintoma é uma propriedade de ser o resultado de uma violenta defesa do ego, a Abwehr (defesa de ataque). Essa defesa sempre é passível de furo, assim surge o sintoma. A partir dessa concepção de sintoma é que se pretende pensar acerca das manifestações sociais do nosso tempo. Pensar se e possível a construção de uma clínica do social, e quais os elementos que estão implicados nessa clínica.
Clavreul diz o seguinte: “(..) a teoria psicanalítica não é um corpo doutrinal que seria conveniente ensinar; ela é o conjunto de referências que permite o analista a ouvir seu paciente. Do que este sofre é de não poder dizer o que tem a dizer, é de não “representar” suas pulsões a ser de forma desconhecível e seus sintomas. A interpretação do psicanalista não é pois, a enunciação da justa doutrina, mas a pontuação dos cruzamentos significantes onde detém e se desvia a enunciação do desejo do paciente.” (1983)
Entendo que seja fundamental interrogarmos o que seja o laço social e o que enlaça o sujeito nisso que denominamos cultura.
No texto “Moral sexual civilizada e doença nervos” (1908d), Freud coloca que: “Nossa civilização repousa, falando de modo geral, sobre a supressão das pulsões. Cada indivíduo renuncia a uma parte dos seus tributos: a uma parcela do seu sentimento de onipotência, ou ainda, das inclinações vingativas ou agressivas de sua personalidade. Dessas contribuições resulta o acervo cultural comum de bens materiais”
O assassinato do pai da horda primeva pelos filhos, pai este que desfrutava da liberdade pulsional e o resto vivia em opressão servil, é o que organiza a civilização, a vida em comunidade. A lei, a proibição do incesto, inaugura a civilização, submetendo todos os filhos à mesma lei. O que vai barrar o ato de matar vai ser o medo de que ele possa morrer, entra em questão a inibição da ação, a substituição do ato pela simbolização, a entrada na linguagem. Os laços vão se constituindo a partir do Simbólico, a civilização encurrala o Real pelo Simbólico.
Pois me parece que a questão do sintoma social esteja na relação da sociedade e seus sócios; nesse sentido poderíamos citar, só para ilustrar, o sintoma meninos e meninas de rua, que é uma produção, poderíamos assim dizer, da nossa sociedade brasileira. Aí entram as particularidades de cada cultura, os elementos estruturantes sobre os quais eu não pretendo discutir nesse momento.
Então, retomando a questão da relação da sociedade e seus sócios, há sempre um gozo, o gozo da vida cotidiana. E escutando o que Octavio de Souza falava ontem à noite, na conferência com o título “Os perigos da reificação da noção de estrangeiro”, sobre o estranho, o não familiar, que há algo de muito familiar que remete, ficamos pensando acerca do gozo do cotidiano, ou melhor, os vários gozos que fazem parte da vida do sujeito na modernidade. As implicações das manifestações sociais, o que se mostra e se esconde na toxicomania, nos meninos e meninas de rua, na violência do dia-a-dia, etc. A angústia deste estranho nos faz excluir, mas o que se coloca quando se deflagra uma campanha nacional contra a fome e a miséria onde a mesma comunidade que exclui, se junta em prol da solidariedade?
O que temos pensado sobre uma clínica do social é escutar a partir das formações sociais a singularidade e o enlace no social. Uma clínica que não reprima o estranho, mas que convide o sujeito a falar disso que nos causa estranheza. Por hoje, é o que tínhamos a dizer. Obrigado.
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Bibliografia
CLAUVREUL lean. A ordem médica. Poder e impotência do discurso médico. São Paulo: Brasi. liense, 1983.
FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
FREUD, Sigmund. Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908d). Rio de Janeiro: Imago, 1980.
As pulsões e seus destinos (1915c), Rio de Janeiro: Imago, 1980,
.Psicologia das massas e a análise do eu (1921c). Rio de Janeiro: Imago, 1900.
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SOUZA Octavio de Reflexão sobre a extensão dos conceitos e da prática. In: ARAGAO, Luiz Tarlei et al. Clínica do Social. São Paulo: Escuta, 1991, p. 75-92.
Originalmente publicado em: Psicanálise e sintoma social II / Organização de Mario Fleig – São Leopoldo, 1Ed, 1998, v. 1, p. 199-204 CDU:159.964.2
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CURSO: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise https://espacolacaniano.com.br/courses/os-quatro-conceitos-fundamentais-da-psicanalise-de-freud-a-lacan/
CURSO: Primeira tópica Freudiana https://espacolacaniano.com.br/courses/fundamentos-psicanaliticos-primeira-topica-freudiana/
CURSO: Primeira Clínica Lacaniana https://espacolacaniano.com.br/courses/fundamentos-psicanaliticos-primeira-clinica-lacaniana/




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