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Reflexões sobre a história da psicologia e a articulação da psicanálise na rede pública de educação

Atualizado: 3 de abr.


Para iniciar uma reflexão acerca da atual inserção de psicólogos na rede pública de educação básica e, por conseguinte, analisar especificamente o trabalho realizado na equipe interdisciplinar na Secretaria Municipal de Educação em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, é oportuno reconstituirmos parte da história da psicologia, especificamente de como esta se constituiu como ciência, particularmente, no Brasil. Retomaremos também os ideais e os propósitos da psicologia escolar e educacional, assim como os efeitos de sua aplicação na educação, para depreendermos as influências do pensamento psicológico no campo da pedagogia. Afinal, esta é uma realidade expressa no cotidiano escolar: há uma replicação, não poucas vezes irreflexiva, de conceitos e fundamentos psicológicos que reforça o discurso da “necessidade” destas mesmas intervenções.


Diante disto, recorreremos ao livro “Psicologias – uma introdução ao estudo de psicologia” de Ana Maria Bahia Bock, Odair Furtado e Aria de Lourdes Trassi Teixeira (2001) que discutem sobre o nascimento da psicologia desde seus primórdios na filosofia, bem como, a evolução como uma área do conhecimento singular. E também com as autoras Maria Helena Souza Patto (1997, 2022) e Deborah Rosária Barbosa (2011) faremos uma reconstituição histórica das origens da psicologia científica e, especialmente, da psicologia escolar e educacional. Ambas as autoras traçam o percurso cronológico da psicologia no mundo e apresentam as principais influências e consequências na psicologia no Brasil.


Bock, Furtado e Teixeira (2001) entendem ser prudente tratar de “psicologias” no plural, porque há uma variedade de teorias muito diferentes umas das outras, com objetos de estudos próprios e métodos distintos. Barbosa (2011) corrobora ao afirmar que


o pesquisador interessado em conhecer melhor sobre Psicologia e sua história logo se depara com alguns dilemas da própria constituição deste campo de conhecimento. Dos principais, podemos citar três dilemas: 1) a discussão se a Psicologia é ou não uma ciência; 2) a multiplicidade de objetos estudados pela Psicologia, o que a torna um campo múltiplo de configurações; 3) a relação entre teoria e prática psicológica (p. 121).

O debate sobre a cientificidade sempre retorna na ciência moderna, buscando novas formas de objetivar as teorias, de apresentar evidências e a (im)possibilidade de replicar os mesmíssimos resultados a partir de um método testado e aprovado, qualificando e quantificando, tanto quanto for possível, os sujeitos e suas experiências.


De início, temos que


e? entre os filo?sofos gregos que surge a primeira tentativa de sistematizar uma Psicologia. O pro?prio termo psicologia vem do grego psyche?, que significa alma, e de logos, que significa raza?o. Portanto, etimologicamente, psicologia significa “estudo da alma”. A alma ou espi?rito era concebida como a parte imaterial do ser humano e abarcaria o pensamento, os sentimentos de amor e o?dio, a irracionalidade, o desejo, a sensac?a?o e a percepc?a?o (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 2001, p. 41).

Saindo do girão do pensamento filosófico, a pesquisa psicológica passa a ser desenvolvida. em laboratórios. No final do século XIX, a psicologia tem seu início, de modo difuso, entre a criação dos primeiros laboratórios de pesquisa e publicações. Barbosa (2011) salienta que “com o tempo, a mensuração passou a ser a regra dos estudos e cresceram as pesquisas baseadas em modelos matemáticos ou biológicos” (p. 126), devido à influência do positivismo. Diante disso, segundo a autora, “o status de ciência, de um modo geral, se obtinha por meio da definição de um objeto próprio de investigação, métodos adequados para acesso, compreensão e explicação deste objeto, bem como a capacidade de ser “independente” de outras áreas de conhecimento” (p. 126).


No decurso de um longo caminho, surgem como um dos expoentes a psicofísica, em 1860, com “a Lei de Fechner-Weber, que estabelece a relação entre o estímulo e sensação, permitindo sua mensuração” (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 2001, p. 50). Entretanto, é com Wilhelm Wundt, em 1875, que os historiadores elegeram o marco inicial da psicologia. A criação do “Laboratório de Psicologia Experimental”, na Universidade Leipzig, na Alemanha, é a referência do advento da psicologia científica, tornando-a um campo de conhecimento autônomo e reconhecendo Wundt como seu fundador, especialmente por, naquele momento, ter unificado a concepção de psicologia. Também é ele quem cria formalmente a disciplina de “Psicologia Experimental”. Essa disciplina “tinha características bem mais filosóficas que psicométricas” (BARBOSA, 2011, p. 128). Maria Helena Souza Patto (2022), faz uma crítica sobre o propósito dessa psicologia experimental, que visava definir quem eram as pessoas menos aptas, considerando apenas características supostamente individuais desconsiderando as contradições e lutas sociais. Segundo a autora, a psicologia científica


gerada nos laboratórios de fisiologia experimental, fortemente influenciada pela teoria da evolução natural e pelo exaltado cientificismo da época, tornou-se especialmente apta a desempenhar seu primeiro e principal papel social: descobrir os mais e os menos aptos a trilhar “a carreira aberta ao talento” supostamente presente na nova organização social e assim colaborar, de modo importantíssimo, com a crença na chegada de uma vida social fundada na justiça. Entre as ciências que na era do capital participaram do ilusionismo que escondeu as desigualdades sociais, historicamente determinadas, sob o véu de supostas desigualdades pessoais, biologicamente determinadas, a psicologia certamente ocupou posição de destaque (p. 83).

Nestes termos, ao desprezar o contexto e a desigualdade social, as diferenças culturais, históricas e a história singular de cada sujeito, a psicologia reforçaria esteriótipos e preconceitos, apoiando-se em argumentos que minimizam a experiência dos indivíduos e elevam a importância das chamadas determinações biológicas do comportamento.


Ainda, entre as escolas de psicologia, a depender da escolha de seu objeto de estudo, há uma definição do que consideram ser os determinantes da vida psíquica das pessoas: os processos mentais, as influências do meio, os comportamentos, etc, resultando em práticas absolutamente diversas nos campos de atuação. Inclusive, podendo haver divergências dentro da mesma escola, como indica Barbosa (2011): “muitos daqueles que foram à Alemanha estudar com Wundt, voltaram para seus países ou universidades e alguns criaram divergências teóricas e metodológicas com o mestre e instituíram novas correntes de pensamento” (p. 130).


Já no Brasil, historicamente, a psicologia teve início


na Faculdade de Medicina da Bahia, Raimundo Nina Rodrigues ocupou lugar de destaque no desenvolvimento da pesquisa e na formação de especialistas em medicina social: entre seus discípulos encontrava-se o médico Arthur Ramos, que viria a contribuir de forma decisiva para o desenvolvimento da psicologia educacional no país, fato que evidencia a existência de nexos entre o pensamento educacional e as teorias médicas da passagem do século, fortemente contaminadas por concepções racistas do comportamento humano e da vida social (PATTO, 2022, p. 144-145).

Segundo Patto (2022), como os primeiros cursos de psicologia no país aconteceram nas faculdades de medicina, então, os professores também eram médicos. Depreendemos disto que a psicologia conquistou o status imaginário como ciência e foi instituída como profissão no Brasil, mas devido sua história e sua formação, remete a um saber médico e, assim como nos primórdios, parece-nos que ela segue submetida a esse saber, sem buscar diferenciar-se, tanto que o psicodiagnóstico psicológico são os manuais psiquiátricos. De acordo com a autora, isso facilitou para que a ideia de anormalidade saísse dos hospitais para adentrar no espaço escolar, dessa maneira, “as crianças que não acompanhavam seus colegas na aprendizagem escolar passaram a ser designadas como anormais escolares e as causas de seu fracasso são procuradas em alguma anormalidade orgânica” (p. 89). Disso decorre um apelo por diagnósticos, laudos e prognósticos médicos e psicológicos, como se eles pudessem antever ou precisar fatos e situações a respeito da criança a ser educada. “Outra confluência, que teria repercussões de peso no pensamento educacional, foi a da corrente mais acentuadamente neuropsiquiátrica e psicofísica experimental com a corrente psicanalítica” (PATTO, 2022, p. 145). De acordo com Patto (2022), no ano de 1914 começaram a circular nos meios psiquiátricos brasileiros as ideias psicanalíticas e em 1918, Lourenço Filho (educador) e Durval Marcondes (médico psicanalista), nomes ligados à educação, foram também fundadores de uma sociedade de psicanálise.


No campo educacional e, em particular, no caso da equipe interdisciplinar na qual atuava, a crença na evolução natural das crianças e no seu desenvolvimento no tempo constitui uma ideia central. Ou seja, acredita-se em um amadurecimento orgânico e espontâneo da criança. A partir desta crença, é possível definir quem são as crianças que “naturalmente” não atingiram o padrão esperado e, por conseguinte, carregam consigo um rótulo que, dado por um desses profissionais, representa algum tipo de “fracasso escolar”.


Não é raro, que esses rótulos recaiam de modo muito mais massivo em escolas de periferias, porém, Patto (2022) salienta que a descoberta dos “menos aptos”, vai além de desigualdades sociais e culturais. Reconhecemos que elas produzem efeitos, no entanto, é dentro das instituições escolares que se faz a educação escolar, a questão é avançar a discussão para além do social e da natureza biológica dos humanos, que é o ponto onde a psicologia moderna mantém o seu discurso. Contudo, desde o princípio, para a psicologia “a influência do modelo médico e positivista é patente” (BARBOSA, 2011, p. 128), e particularmente “no Brasil a psicologia nasce no meio médico” (PATTO, 2022, p. 144). É válido ressaltar que



os primeiros especialistas que se ocuparam de casos de dificuldade de aprendizagem escolar foram os médicos. O final do século XVIII e o século XIX foram de grande desenvolvimento das ciências médicas e biológicas, especialmente da psiquiatria. Datam desta época as rígidas classificações dos “anormais” e os estudos de neurologia, neurofisiologia e neuropsiquiatria conduzidos em laboratórios anexos a hospícios. Quando os problemas de aprendizagem escolar começaram a tomar corpo, os progressos da nosologia já haviam recomendado a criação de pavilhões especiais para os “duros da cabeça” ou idiotas, anteriormente confundidos com os loucos; a criação desta categoria facilitou o trânsito do conceito de anormalidade dos hospitais para as escolas: as crianças que não acompanhavam seus colegas na aprendizagem escolar passaram a ser designadas como anormais escolares e as causas de seu fracasso são procuradas em alguma anormalidade orgânica (PATTO, 2022, p. 89).

Essa constatação é interessante, na medida em que identificamos ainda hoje na psicologia e, não seria diferente, na psicologia escolar e educacional, uma marca significativa do conhecimento médico, sendo este quase uma extensão das intervenções psicológicas, formando um continuum de encaminhamentos. E é precisamente isto que nos deparamos ao retomar a posição sustentada pelo discurso pedagógico hegemônico, os encaminhamentos para consultas médicas têm o intuito de produzir incessantemente uma “fabricação-de-imagens”, de “qualificação, de “regularização” e de “moralização” e, nessa perspectiva, que a psicologia consegue se engatar: uma promessa de uma cooperação e parceria na fabricação de sujeitos.


Em sua pesquisa, Patto (2022) revela que a existência de uma “política educacional” teve início no século XIX e desdobrou-se em três vertentes: uma provinda do iluminismo, caracterizada pela “crença no poder da razão e da ciência” (p. 61), outra advinda de “um projeto liberal de um mundo onde a igualdade de oportunidades viesse a substituir a indesejável desigualdade baseada na herança familiar” (IDEM) e a terceira referente à “consolidação dos estados nacionais” (IDEM). A autora sugere que a ideologia nacionalista seja a principal propulsora da implantação das redes públicas de ensino, especialmente na América do Norte e em parte da Europa nas últimas décadas do século XIX. E, assim, constitui-se uma “crença generalizada de que chegara o momento de uma vida social igualitária e justa era o cimento ideológico que unia forças e punha em relevo a necessidade de instituir mecanismos sociais que garantissem a transformação dos súditos em cidadãos” (PATTO, 2022, p. 61). De certa maneira, esta vida igualitária e justa passava pela instituição de escolas de maneira “universal, obrigatória, comum” (ZANOTTI, 1972 apud Patto, 2022). Em decorrência dessas crenças surgiu “a concepção da escola como instituição “redentora da humanidade”” (p. 62). Porém, os sistemas nacionais de ensino não tomaram proporções significativas de imediato, pois até o “final do século XVIII até meados do século seguinte, a presença social da escola é muito mais intenção de um grupo de intelectuais da burguesia do que realidade” (IDEM).


Existiam diversos motivos para que a ideia da política educacional não se efetivasse. Conforme análises histórias consideradas por Patto (2022) as escolas não se tornavam realidade dentre outras razões, porque haviam outras alternativas para suprir a pequena demanda de qualificação de mão-de-obra e não tinha um apelo popular por escolarização. Sendo assim,


neste peri?odo, a escola tambe?m na?o e? necessa?ria enquanto instituic?a?o destinada a fixar um determinado modo de sociabilidade; sua dimensa?o reprodutora das relac?o?es de produc?a?o, via manipulac?a?o e domesticac?a?o da conscie?ncia do explorado, tambe?m era dispensa?vel num momento em que este ainda na?o se constitui?ra como forc?a de oposic?a?o ao estado de coisas vigente e enquanto as instituic?o?es religiosas davam conta do papel justificador das desigualdades existentes (PATTO, 2022, p. 65).

Sobre a educac?a?o e a psicologia escolar e educacional no Brasil, recaem essas influe?ncias, especialmente do pensamento norte-americano que atribui “ao meio familiar culturalmente pobre a origem do mau rendimento escolar” (PATTO, 2022, p. 649). No Brasil, Arthur Ramos, me?dico psiquiatra, antropo?logo e psico?logo, dedicou-se a? escrever livros a respeito da educac?a?o, que se tornaram refere?ncia para os pedagogos da e?poca. A refere?ncia psicanali?tica de Ramos o levou a alguns questionamentos, como


a expressão “criança problema”, tinha como palavra-chave o conceito de desajustamento e como objetivo a correção dos desvios. Mais que isto, Ramos é um crítico dos abusos da psicometria e da importância exagerada dispensada à dimensão intelectual na explicação do comportamento e seus desvios, postura coerente com sua adesão à psicanálise, que privilegia a dimensão afetiva na explicação da conduta e o método clínico na investigação de seus desvios (PATTO, 2022, p. 150).

Ramos estava afinado com as ideias dominantes na psicologia educacional de sua época que “embora reconhecesse a importância da maturação no processo de desenvolvimento, queria ressaltar a influência do meio” (PATTO, 2022, p. 150). “Em outras palavras, foi no fogo cruzado de preconceitos e estereótipos sociais, cientificamente validados, e do ideal liberal da igualdade de oportunidades que se geraram ideias que interferiram nos rumos da política, da pesquisa e das práticas educacionais” (PATTO, 2022, p. 156). A autora acentua que muitos discursos preconceituosos e racistas estavam presentes na construção das teorias psicológicas sobre a educação no Brasil. Teorias que explicavam os problemas da educação, por exemplo, pela carência cultural, nesta vertente de pensamento decorre da influência das explicações formuladas nos Estados Unidos no início dos anos 1970:


basicamente, a “teoria da carência cultural” passava a explicar esta desigualdade pelas diferenças de ambiente cultural em que as crianças das chamadas classes “baixa” e “média” se desenvolviam. A partir dos resultados de centenas de pesquisas, em sua maioria fiéis ao modelo experimental, sobre as características físicas, sensoriais, perceptivo-motoras, cognitivas, intelectuais e emocionais de crianças pertencentes a diferentes classes sociais, esta “teoria” afirmou, em sua primeira formulação, que a pobreza ambiental nas classes baixas produz deficiências no desenvolvimento psicológico infantil que seriam a causa de suas dificuldades de aprendizagem e de adaptação escolar (PATTO, 2022, p. 171).

O que as autoras Patto (2022) e Barbosa (2011) evidenciam é que a psicologia no Brasil teve forte influência de autores norte-americanos e franceses, que se alternaram no decorrer da história e que enfocaram suas pesquisas no desenvolvimento naturalista das crianças, das interferências do meio nas aprendizagens e nos testes psicométricos como método de avaliação psicomaturacional dos alunos. Elas também concluem que o alcance de uma autonomia enquanto saber psicológico, sempre esteve atrelada aos saberes da Medicina e também da Educação, passando por diversos processos. Por essa razão, autores como Pessotti (1975) definiram que, no Brasil, a psicologia passou por diferentes períodos. “Pessotti propõe uma periodização, identificando quatro momentos da história da Psicologia no Brasil. Estes períodos foram definidos como: 1) período pré-institucional (até 1833); 2) período institucional (1833- 1934); 3) período universitário (1934 – 1962) e 4) período profissional (1962 em diante)” (BARBOSA, 2011, p. 160). O primeiro, se trata da inserção das ideias psicológicas nas Faculdades de Medicina, sendo abordada em artigos e teses. O segundo, se refere a um período em que a psicologia se transforma em uma disciplina relativamente autônoma e, a partir disto, passam a funcionar os primeiros laboratórios experimentais. O período universitário é o momento no qual a psicologia ganha mais autonomia e os conhecimentos produzidos em outros países passam a ser aplicados aqui. E, por fim, a formalização da profissão de psicólogo, regulamentada por lei.


As autoras Patto (2022) e Barbosa (2011) explicitam ainda o quanto a história da psicologia enquanto ciência e profissão no Brasil, se confunde com a psicologia educacional e escolar, que não é uma da teoria psicológica, contudo, funda-se como uma das áreas de interesse e de atuação e esta atuação é fundamentada nos mais diversos referenciais teóricos (comportamentais, behavioristas, psicanalíticos, sistêmicos, etc) que são utilizados para sustentar uma prática nos espaços escolares. E, dessa forma, a história da psicologia escolar também pode ser dividida em três tempos, conforme cita Barbosa (2011):


um primeiro registro importante em termos historiográficos da Psicologia Educacional e Escolar foi estruturado por Pfromm Netto em seu artigo “As origens e o desenvolvimento da Psicologia Escolar” (1996). Nesse trabalho, o autor defende que a história da Psicologia Educacional e Escolar no Brasil pode ser dividida em três momentos: o primeiro momento (1830-1940) é relacionado às Escolas Normais, chamado por este de “fase normalista”, a segunda fase (1940-1962) é descrita como “fase universitária” devido ao ensino de Psicologia nas universidades, e a terceira (a partir de 1962) é marcada pela criação da ABRAPEE e realização dos congressos científicos na área (p. 177).

Reconstituindo a história da psicologia, identificamos os diversos movimentos traçados pelos autores e pesquisadores, bem como o afastamento e a aproximação com variados campos do conhecimento, como acontece com a educação, que se tornou um campo de aplicação técnica de saberes psicológicos. E, dessa forma, criaram-se espaços de discussões e foram conformando um ideário pedagógico que Lajonquière (1999) identificou como estando articulado em torno do que ele chama de ilusão (psico)pedagógica. Barbosa (2011) observa como esse processo desponta sobretudo nos Estados Unidos e na França. Conforme a autora, nos EUA surgem diversas correntes de pensamentos psicológicos que “expandiram seus domínios para outros países, como o Brasil” (p. 131), entre elas destaca-se o Funcionalismo, com objetivo de tornar os conhecimentos psicológicos aplicáveis, despontando as ideias darwinistas, compreendendo “que o funcionamento do psiquismo obedecia às mesmas leis da evolução, ou seja, a mente funcionava a partir da melhor forma adaptativa, buscando equilíbrio e adequação ao ambiente” (p. 133). Daí podemos ressaltar as influências do entendimento de um ser humano determinado pela sua natureza, assim como os animais. Isto é, depreende-se que, se a pessoa está fisiologicamente saudável ela é capaz de realizar aquilo que se espera em cada etapa do desenvolvimento. Estas afirmações têm suas bases fundamentadas nas explicações fisiológicas e na compreensão dos processos psíquicos, como as realizadas nos estudos de Galton, que “explicita a concepção de habilidades “naturais”, seguida da determinação hereditária destas relacionadas ao mundo “orgânico”. Em outros termos, a explicação é biológica, naturalista, e sobretudo, com foco nas características hereditárias” (BARBOSA, 2011, p. 134). E é neste contexto que a autora sinaliza que emergiu a psicometria.


A psicometria é um dos recursos mais solicitados pelos pedagogos para tipificar comportamentos e habilidades dos alunos aos quais não se tem “controle”, aqueles que não se submetem aos “combinados” e que não respondem a um determinado padrão desejado em sala de aula. A partir do laudo, o professor respalda suas intervenções, sejam elas uma avaliação diferenciada e até mesmo uma exclusão da criança dita “laudada” de atividades que participam os demais alunos. Entretanto, esta concepção não é uma novidade no campo da psicologia e da educação. Esses pressupostos tão difundidos na atualidade estão arraigados num pensamento psicológico desde a sua origem e nos permite traçar caminhos para reiteradas discussões, sobretudo sobre a ilusão (psico)pedagógica.


A caracterização das crianças com dificuldades ou que apresentam alguma falta de adequação ao esperado, especialmente pelo pensamento psicopedagógico, vem fortemente marcada pelas construções de escalas psicométricas e o laudo, tão cobiçado pelos pedagogos, é o resultado e a resposta esperada. Na França, a Escala Binet-Simon, por exemplo, foi elaborada com “tarefas para cada nível de idade da criança. A ideia de Binet e Simon era poder identificar as crianças educáveis, ou seja, reconhecer aquelas que tinham (ou poderiam ter) problemas no âmbito escolar, ou demonstravam algum tipo de “atraso” em relação às outras crianças” (BARBOSA, 2011, p. 136-137). Uma das vertentes da ilusão (psico)pedagógica, de uma certa maneira, usou das escalas como meio de adequação; isto é, definiram-se padrões e, desta forma, aqueles que estão fora deste padrão, são objetos de um trabalho específico para atingir um mínimo de adequação. Dessa maneira, a ilusão (psico)pedagógica leva a compreender que “o ensino deveria ser “adequado” para o nível das crianças, de modo a ajudá-las em seu desenvolvimento” (BARBOSA, 2011, p. 137), assim como previam os autores da Escala, Binet e Simon, numa tentativa de identificar o nível mental das crianças. Nesse ínterim que surge a psicometria, que visa medir o quoeficiente de inteligência proposto por Stern, que avalia a idade cronológica da criança e os níveis de inteligência categorizando e classificando crianças dentro de um conjunto de variações numéricas (BARBOSA, 2011). A questão que se irrompe é que o intuito da utilização destes testes psicológicos na educação tem o “objetivo de formar classes homogêneas ou indicar que a criança deveria ir para classes ou escolas especiais” (p. 139). Ou seja, consequentemente, há um efeito de segregação.


Não é raro escutar de professores queixas relativas ao contexto em que a criança vive, relacionando um certo número de dificuldades a falta de estímulos, precariedade nos afetos e até uma vulnerabilidade social, sobre isso Lajonquière (1999) pondera que “a pedagogia atual explica tudo aquilo que considera um fracasso educativo em termos de resultado de uma falta de adequação, ou relação natural, entre a intervenção do adulto e o estado psicomaturacional das crianças e dos jovens” (p. 28, destaques em itálico do autor) e, é nessa tese de “conaturalidade” que se reservam o direito de utilizar dessas respostas generalistas.



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Autora: Karen Graziele Tavares


Graduada em Psicologia, em formação em psicanálise, Mestrada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP, Coordenadora do Núcleo Psicanálise e Educação do Espaço Clínico e de Estudos Psicanalíticos – ECEP – Três de Maio/RS, Integrante da Equipe Interdisciplinar da Secretaria Municipal de Educação – EISME – Horizontina/RS.


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