O conceito de transferência de Freud a Lacan
- Lisiane Fachinetto
- 20 de set. de 2023
- 17 min de leitura
Atualizado: 22 de mar.
O conceito de transferência
A transferência, tal qual concebida neste trabalho, é um vínculo que se estabelece exclusivamente nas relações humanas (FREUD, 1912). A transferência remete a estrutura de funcionamento do sujeito, como ele se relaciona com os outros.
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A transferência na obra de Freud
A noção de transferência surgiu na obra freudiana no texto Estudos sobre a histeria (1895), escrito em parceria com Breuer, um médico que utilizava o método da hipnose para tratar seus pacientes.
O colega de Freud discutiu o caso de uma paciente, designada de Anna O. que se encontrava em tratamento e que foi abruptamente encerrado devido ao impacto produzido, no médico, pelos sentimentos despertados pela paciente. Frente à interrupção do tratamento, por parte de Breuer, a paciente produziu um sintoma, uma gravidez psicológica. Freud, a partir do relato de Breuer, percebeu que havia uma relação entre a formação sintomática de Anna O. e o rompimento da relação médico-paciente. A conclusão de Freud é no sentido de que a intervenção do médico tem efeitos, sendo que a mesma pode influenciar sempre. Ele afirma que é a partir do trabalho do médico que dá o destino da relação transferencial, que pode produzir novos sintomas, a cura, repressão etc.
Freud inicia sua construção do conceito de transferência privilegiando sua dimensão de inércia, de resistência. Nos artigos dedicados a compor o que ficou conhecido como sua “metapsicologia”, Freud (1912) afirmou que a transferência pode ser considerada como uma reedição de conteúdos edípicos. Para ele, a transferência estabelece uma falsa ligação, um processo pelo qual o sujeito reatualiza, em suas novas relações, traços daquelas que teve com os seus genitores na infância.
Nesse sentido, cumpre esclarecer que essa formulação inicial não é produtiva para os estudos educacionais. Qual a vantagem, para um professor, reconhecer que, independente do que ele faça, seus alunos cobrarão dele as contas que não bateram na relação com seus pais?
Na transferência, o sujeito revive a forma de relação que ele estabelece com os outros. No texto Recordar, Repetir e Elaborar, Freud (1914) aponta que a transferência é um fragmento da repetição, “e que a repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual” (FREUD,1914, p. 197). Assim, o sujeito repete em lugar de recordar.
O que o paciente resiste em recordar é expresso pela atuação. Freud recomenda que o tratamento analítico aponte as resistências do paciente, dê um tempo para que esse se familiarize, para elaborá-la e, então, superá-la. Segundo Freud (1905/1989, p.110), as transferências são
“reedições, reproduções das moções e fantasias que, durante o avanço da análise, soem despertar-se e tornar-se conscientes, mas com a característica (própria do gênero) de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. Dito de outra maneira: toda uma série de experiências psíquicas prévia é revivida, não como algo do passado, mas como um vínculo atual com a pessoa do médico. Algumas dessas transferências em nada se diferenciam de seu modelo, no tocante ao conteúdo, senão por essa substituição.”
Freud também refere que o processo analítico não cria a transferência, mas a revela. Desse modo, a situação de análise pode possibilitar ao paciente reviver as experiências psíquicas que originaram conflitos, e o analista, a partir da intervenção, pode levar o sujeito a uma ressignificação das mesmas. Freud alerta para o manejo da transferência, pois, se o analista ignorá-lo, pode colocar em risco o tratamento.
No caso Dora, por exemplo, ele reconhece que não manejou precisamente a transferência de sua paciente, como se lê no que se segue: “não consegui dominar a tempo a transferência; graças à solicitude com que Dora punha à minha disposição no tratamento uma parte do material patogênico, esqueci a precaução de estar atento aos primeiros sinais da transferência […], ainda ignorada por mim” (FREUD, 1905, p. 112).
Importante ressaltar que na análise e no processo de orientação, como proposto nesta tese, a transferência é o que sustenta o trabalho, o qual só é possível ser desenvolvido em parceria. Freud (1937/1987), em um de seus últimos textos, Construções em Análise, considera que o trabalho da análise envolve duas pessoas, cada uma delas tem uma tarefa específica. A tarefa do analista é:
a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo. A ocasião e o modo como transmite suas construções à pessoa que está sendo analisada, bem como as explicações com que as faz acompanhar, constituem o vínculo entre as duas partes do trabalho de análise, entre o seu próprio papel e o do paciente. (FREUD, 1937/1987, p. 173-174).
Retomando a análise do fragmento do caso Dora, mais especificamente o manejo de Freud, é possível concluir que o momento de construção do conhecimento, nesse caso a concepção de transferência, por parte do analista, tem implicação direta com o encaminhamento do processo terapêutico.
Nesse sentido, apresento as formulações do psicanalista francês Jacques Lacan a respeito do conceito de transferência, as quais permitem avançar no manejo da mesma.
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A transferência na obra de Lacan
Na impossibilidade de discutir a extensa obra de Jacques Lacan e sua contribuição para a reinvenção da clínica psicanalítica, no que segue privilegiarei três aspectos fundamentais para a compreensão das reformulações no conceito de transferência por ele introduzidas: as inversões dialéticas; a suposição de saber e a mobilização da energia sexual.
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As inversões dialéticas e o manejo da transferência
Discutir sobre a transferência em Lacan é importante em função de suas novas considerações acerca do conceito freudiano. No texto Intervenção sobre a transferência (1951/1998), o psicanalista francês, na sua releitura de Freud, retoma o caso Dora para pensar a respeito da transferência. O objetivo do autor é analisar o manejo da transferência feito por Freud e seus efeitos no tratamento de Dora.
No texto mencionado, Lacan analisa a transferência de Dora em termos de inversões dialéticas. Segundo ele, a Psicanálise seria uma experiência dialética, noção essa que deve prevalecer quando se pensa sobre a natureza da transferência. No início de seu ensino, ele estabelece relações entre a Psicanálise e a dialética de Hegel. Considera que a dialética é uma“etapa necessária para se fazer brecha nesse mundo dito de positividade” (LACAN, 1963). Assim, a sua releitura de Freud passa necessariamente pela dialética. No caso da análise da direção dada por Freud no tratamento de Dora, ele a entende a partir de uma série de inversões dialéticas ou reviramento dialético.
Antes de discutir acerca do texto de Lacan, considero importante contextualizar o caso clínico em questão. Freud atendeu Dora, pseudônimo da paciente que tinha dezoito anos, por três meses no final do ano de 1900. O caso foi publicado em 1905 e se chamou Fragmento da análise de um caso de histeria. O próprio autor reconhece que o término prematuro do tratamento foi devido ao manejo deficiente da transferência. Um aspecto relevante é quanto ao entendimento de Freud acerca da relação estabelecida no tratamento. Segundo o autor, o analista participa da transferência e não somente o paciente. Salienta que a postura e interpretações do analista podem possibilitar ou não o avanço do tratamento.
Os manejos feitos por Freud ajudaram no tratamento de Dora, ao mesmo tempo em que foram responsáveis pela interrupção do tratamento por parte da paciente. No decorrer do caso, Freud confronta a moça quanto a sua participação na trama amorosa que envolve o sr. K, a sra. K e seu pai. Nesse processo, Lacan (1951/1998) pontua a existência de duas inversões dialéticas. Ele considera que a primeira inversão trata-se da posição de vítima à posição de cúmplice, na qual está em jogo a confusão entre a identificação feminina e a identificação masculina.
No desenvolvimento da primeira verdade de Dora, Lacan o entende como constituído por quatro tempos, a saber: (1) Dora ao narrar a situação, ela se desimplica da mesma; (2) a intervenção de Freud é no sentido de questionar sobre a sua parte na história, o que leva à implicação, interroga a responsabilidade de Dora na sua própria queixa e a desestabilização da versão apresentada por Dora; (3) a partir da intervenção, Dora retifica a narrativa, revelando que tinha parte ativa nos males dos quais se queixava; evidencia-se, portanto, a identificação ao pai impotente; e (4) Freud interroga sobre o início do sentimento de ciúme, visto que Dora ajudava o pai no caso amoroso do mesmo com a sra. K protegendo o casal de amantes. Os efeitos produzidos pela primeira inversão é o questionamento de Dora em relação à posição que ocupa nos seus próprios males.
Freud considerou que a função de Dora de proteger o casal de amantes não é a responsável por tanto sofrimento e entende que o ciúme aponta para o verdadeiro motivo: o mascaramento do interesse de Dora pela sra. K. Tal descoberta leva à segunda inversão dialética, do ciúme heterossexual para o homossexual. O processo é composto por três tempos: (1) Freud questiona a relação de Dora com a sra. K.; (2) Dora admite o apego erotizado à sra. K. e (3) Freud pontua o componente amoroso na raiva contra a sra. K e mostra a grande cumplicidade de Dora com a sra. K. A relação de Dora com a sra. K. aponta para o mistério da própria feminilidade de Dora. O tratamento é encerrado pela paciente nesse momento.
Segundo Lacan, faltou a Freud fazer a terceira inversão dialética, a qual teria sido desejável. Contudo, Dora interrompeu o tratamento. Para Lacan, faltou a revelação da questão histérica “o que é uma mulher?”. Segundo Couto (2004, p. 276), caso Freud a tivesse feito, “Dora poderia aceitar a cortesia masculina, reconhecer-se como mulher, ter acesso a sua feminilidade, e poderia desejar o objeto viril, oferecendo-se como objeto a quem ela haveria de amar”.
Lacan aponta que o manejo deficiente da transferência feito por Freud decorre do fenômeno da contratransferência. Segundo o autor, “A transferência não é nada de real no sujeito senão o aparecimento, num momento de estagnação da dialética analítica, dos modos permanentes pelos quais ele constitui seus objetos” (LACAN, 1951/1998, p. 225).
Considero importante a ideia das inversões dialéticas proposta por Lacan para pensar sobre o estabelecimento do laço transferencial entre o professor-orientador e aluno-orientando e as intervenções feitas pelo professor-orientador no sentido de levar Joana a mudar de posição frente a sua própria escrita. Retomo essa discussão na parte II desta tese, no capítulo A relação professor-aluno em movimento, no qual analiso o início da transferência da orientanda a partir dos efeitos das intervenções da orientadora.
Importante ressaltar que na análise é preciso que o analista faça o manejo da transferência. No entanto, ele não consegue fazer isso com todo mundo. A condição necessária para a transferência é que o analisando suponha um saber diferenciado no analista. Ressalto que a transferência não é condicionada pelo analista, mas, sim, pelo analisante. Ao analista cabe a função de saber utilizá-la, o que em Psicanálise é denominado de manejo da transferência. Assim, tornou-se necessário investigar como essa suposição se instala.
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A suposição de saber e a instauração das condições para o manejo produtivo da transferência
No Seminário VIII, Lacan (1960-1961/1992) avança na elaboração do conceito de transferência. Nesse momento, constata-se uma passagem: a saída da concepção da transferência enquanto uma reedição de relações anteriores para uma perspectiva do amor de transferência, evidenciando, assim, a problemática do amor.
Nesse seminário, Lacan (1960-1961/1992) retoma o texto O Banquete, de Platão, para tratar a respeito do amor. Por essa razão, julgo importante trazer, mesmo que resumidamente, elementos do Banquete.
O Banquete é um diálogo platônico, o qual é constituído por uma série de discursos que versam a respeito do amor. Agaton, poeta ateniense, promove uma festa cujo convidado mais importante é Sócrates. Um dos convidados, Eriximaco, propõe uma discussão, na qual todos deveriam fazer um discurso a respeito do amor. A partir dessa proposta, Sócrates sugere que a discussão deveria começar com a definição de amor. A definição de amor, segundo Platão, é como a junção de duas partes que se completam, sendo que a beleza do amor reside na completude, o todo indissociável. Essa concepção de amor é importante, pois no decorrer do trabalho apresento a contraposição de Lacan a esse conceito presente no Banquete.
Além do conceito de amor apresentado no Banquete, outro aspecto é relevante, a saber: a posição que o Sócrates ocupa na situação ocorrida no Banquete: ele é o convidado mais importante cuja opinião é prezada por todos. A proposta de que os convivas se dediquem a conceituar o amor é de sua autoria. O filósofo, inclusive, declara-se autorizado a falar a respeito desse assunto por ter sido, em sua juventude, aluno de uma sacerdotisa que lhe havia ensinado a genealogia do amor. No debate, Sócrates é colocado no lugar de mestre, daquele que sabe.
O que nos interessa, entretanto, é o fato de Sócrates não ocupar o lugar onde ele foi colocado. Ao invés de se pronunciar sempre magistralmente, ele vai alternando momentos de silêncio, provocações, apresentação de ideias, reconhecimento, como também estimulando os participantes da discussão. Ou seja: ele não se atém ao lugar de dono exclusivo do saber, mas age para colocá-lo em circulação.
Posto isso, voltemos às elucubrações que Lacan (1960-1961/1992) faz a respeito do conceito de transferência motivado pelo estudo desse texto. Ele chama a atenção para a relação entre Sócrates e Alcebíades, considerando duas posições amorosas diferentes: do amante e do amado. Lacan analisa a relação entre Sócrates, o mestre, e Alcibíades, o discípulo. Na relação, o que caracteriza o amante é que ele não sabe o que lhe falta, sujeito da falta, enquanto o amado é caracterizado por aquele que não sabe o que tem que gerou o amor do amante.
Sócrates entende o amor na perspectiva da complementaridade, na ideia de que dois se transformam em um. Segundo o filósofo, ama-se sempre aquilo que lhe falta e isso que falta está no outro. Lacan se opõe a essa noção. Para o psicanalista, não se trata de um completar o outro, não se faz um, segundo ele “Pelo efeito de fala, o sujeito se realiza sempre no Outro,mas ele aí já não persegue mais que uma metade de si mesmo” (LACAN, 1964/1998, p. 178).
Lacan considera esse ponto crítico como a articulação fundamental do problema do amor. Segundo o autor: “O problema do amor nos interessa na medida em que vai nos permitir compreender o que se passa na transferência – e, até certo ponto, por causa da transferência” (1960-1961/1992, p. 43). Ele situa o problema do amor justamente quanto “o que falta a um não é o que existe, escondido no outro” (p.46). Assim, o que nos interessa nesse entendimento de amor de Lacan é justamente o que está presente no engendramento do amor, a saber: a falta e o não saber (ignorância).
No caso, para Alcebíades, o agalma (termo grego que designa um objeto precioso, uma caixa de jóias) está em Sócrates, objeto de desejo que provocou o amor de Alcebíades por Sócrates. Segundo Lacan (1960-1961/1992), Alcebíades toma Sócrates como algo precioso.
Nessa perspectiva, é possível considerar Sócrates como o objeto da pulsão, pois, como afirma Lacan (1956-1957/1995), o objeto é variável e sempre aponta para a falta, e a tentativa do sujeito de saná-la leva a constante busca pelo objeto perdido, a qual é sempre frustrada. O autor diz: no centro da relação sujeito-objeto, uma tensão fundamental, que faz com que o que é procurado não seja procurado da mesma forma que o que será encontrado. É através da busca de uma satisfação passada e ultrapassada que o novo objeto é procurado, e que é encontrado e apreendido noutra parte que não noutro ponto a que se procura. (LACAN, 1956-1957/1995, p. 13)
Lacan (1960-1961/1992) reformula a concepção de relação sujeito-objeto no Seminário VIII. Afirma que o objeto não é total, “é esta alguma coisa que é visada pelo desejo como tal, que acentua um objeto entre todos, por não ter comparação com os outros. É essa acentuação do objeto que responde a introdução, em análise, da função do objeto parcial” (LACAN, 1960-1961/1992, p.149).
O autor também refere que ele está no centro do desejo e considera que se o objeto apaixona, como no caso de Alcebíades e Sócrates, “é porque ali dentro, escondido nele, há o objeto do desejo, agalma” (LACAN, 1960-1961/1992, p.149). Lacan conclui afirmando que o que motivou o amor de Alcebíades por Sócrates foi que o primeiro possuía o agalma.
Essa metáfora interessa, na medida em que possibilita pensar a relação professor/orientador-orientando, na perspectiva em que o orientando supõe que quem sabe é o professor, esse tem o que é desejado, o saber. A questão que se coloca é justamente quanto à posição do professor: o que ele faz com esse endereçamento de amor?
O amor de transferência, esse endereçamento, é uma condição de possibilidade de uma análise. É também uma condição de possibilidade de uma análise o fato de o analista possa ter em conta esse endereçamento, pois é desse lugar que nos é oferecido no discurso do analisante que pode surgir uma palavra que tenha efetividade. O amor na transferência intensifica, impulsiona a produção de efeitos de sujeito, de verdade (produção de S1) na medida em que a palavra é ouvida como de um lugar Outro, de um lugar terceiro, da verdade (PEREIRA, APPOA, 2012, s/p)
Defendo a tese de que a transferência pode facilitar a vida do orientador na medida em que o orientando supõe saber no orientador. Via essa suposição, o aluno vai ouvir sua palavra como tendo sido pronunciada de um lugar Outro, atribuindo-lhe, por assim dizer, um valor mais precioso do que as demais palavras. Segundo Lacan, “Pelo simples fato de havertransferência, estamos implicados na posição de ser aquele que contém o agalma, o objeto fundamental de que se trata na análise do sujeito” (1960-1961/1992, p. 194).
Ainda nesse texto, Lacan (1960-1961/1992) apresenta a elaboração do conceito de Sujeito Suposto Saber (SsS). O autor refere que Sócrates, no Banquete, é lugar de transferência, ele ocupa o lugar de suposto saber. A suposição do saber implica o amor, Alcebíades ama o saber que supõe em Sócrates. Assim, a suposição de saber, por parte do analisando, na figura do analista, seria a condição para a instauração da transferência.
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A mobilização da energia sexual na faceta de trabalho
No Seminário XVII, Lacan (1969-1970/1992) deixa a perspectiva do SsS na instauração da demanda dirigida ao analista. Ele percebe que, em uma análise, o mais importante não é que o analista saiba algo, mas, sim, que possa abrir mão de uma parcela de seu narcisismo para dar crédito ao outro. Mesmo quando as formulações de seu paciente são ainda insípidas e inconsequentes, ele espera por algo melhor, pois ele supõe saber no paciente, “O analista diz àquele que está para começar – Vamos lá, diga qualquer coisa, vai ser maravilhoso. É ele que o analista institui como sujeito suposto saber” (LACAN, 1969- 1970/1992, p. 50).
Ao invés do analista encarnar o sujeito suposto saber, Lacan coloca o analisando no lugar de suposto saber. Essa nova perspectiva requer a paciência do analista, como um manejo do mesmo no que se refere ao momento inicial da análise, o qual o analisando está preso à ideia de quem sabe a respeito do seu sofrimento é o analista. Ao não responder desse lugar, o analista possibilita ao analisando que construa o seu saber acerca do seu sofrimento.
No caso do trabalho de orientação, o orientador precisa ter paciência com todos os alunos que começam um trabalho. Spinelli (no prelo), ao tratar a respeito do manejo da transferência, por parte do orientador, em contexto de formação do pesquisador na universidade, refere que colocar a transferência a serviço da produção de bens culturais só é possível à medida que “o orientador ocupa o lugar de SsS na transferência sem se investir dele, ou seja, é quando entra em vigor o desejo do analista. Isso acontece quando o professor coloca-se como suporte do objeto a, fazendo a transferência girar, entrar em movimento” (no prelo, s/p).
O estabelecimento do sujeito suposto saber tem como efeito o amor, para Lacan: “Com o surgimento do amor se dá a transformação da demanda, uma demanda transitiva (demanda de algo, como por exemplo, livrar-se de seu sintoma) torna-se uma demanda intrasitiva (demanda de amor, de presença, já que o amor demanda amor)” (QUINET, 2000, p. 29).
No Seminário XX, Lacan (1972-1973/2008, p. 23) retoma a ideia de amor, considerando-o “o signo de que trocamos de discurso”. O amor seria a mola que promoveria as mudanças no sujeito, “troca de discurso- isso mexe, isso os, isso nos, isso se atravessa” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 24). Na transferência, as relações perduram. Ela pode sustentar um período de elaboração longo, como é o caso de uma pós-graduação.
É possível dividir em dois momentos a elaboração do conceito de amor em Lacan: (1) O amor se deve à suposição de saber (conhecida como primeira clínica) e (2) O amor deve ser lido como um signo da troca de discurso, o qual é efeito do agenciamento pelo não sentido como agente que está no discurso do analista (segunda clínica).
Na primeira elaboração o que levaria a construção do saber é o desejo de saber, enquanto na segunda, o que promove o saber é objeto a, objeto causa de desejo. A função do orientador, nessa última perspectiva, é colocar em movimento o objeto da pulsão a partir de um lugar vazio.
Até o presente momento, tratou-se de compreender o conceito de transferência. No próximo item, discuto o conceito de transferência de trabalho, a partir do qual busco compreender o laço que se estabelece entre o professor/orientador-orientando e seus efeitos no ensino da escrita acadêmica.
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A transferência de trabalho
É relevante tratar desse conceito em função do entendimento da natureza do laço estabelecido entre o orientador e orientando. O conceito de “transferência de trabalho”, termo proposto por Lacan (1964b/2001) é pertinente por se tratar de um encaminhamento da transferência para uma produção escrita, portanto fundamental para o desenvolvimento da presente pesquisa. Primeiramente, considero importante ressaltar que Freud não faz uso da expressão transferência de trabalho, mas já fazia referência às questões implicadas no processo de transmissão de um conhecimento.
Para as discussões sobre a sua ciência, Freud criou a Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, da qual era o líder, e coordenava os trabalhos. As reuniões tinham um ritual; cada membro apresentava o seu texto, depois havia a discussão e, por fim, Freud proferia a palavra final sobre a discussão. Em 1908, dessas reuniões se originou a Sociedade Psicanalítica de Viena e, mais tarde, a Associação Psicanalítica Internacional (IPA), cujo modelo serviu para inúmeras sociedades espalhadas pelo mundo (GAY, 2001).
Chamo a atenção para a presença do texto como ponto de partida para as discussões, tanto no grupo das quartas-feiras de Freud, quanto no trabalho do cartel proposto por Lacan (1964/2001). Quanto à experiência de Freud nos encontros do grupo, ele mesmo diz:
A partir do ano de 1902, certo número de jovens médicos reuniu-se em torno de mim com a intenção expressa de aprender, praticar e difundir o conhecimento da psicanálise.[…] penso que fiz o possível para transmitir meu conhecimento e experiência aos outros. Houve apenas duas circunstâncias inauspiciosas que terminaram por me afastar internamente do grupo. Não consegui estabelecer entre os seus membros as relações amistosas que devem prevalecer entre os homens que se acham empenhados no mesmo trabalho difícil, nem consegui evitar a competição pela prioridade a que dá margem, com tanta frequência, esse tipo de trabalho em equipe” (FREUD,1914/1987, p.36).
Lacan (1964/2001), na ata de fundação da Escola Freudiana de Paris, de 1964, apontava para a questão da transmissão da psicanálise e os riscos dos membros da Escola operarem pela via do dogma, da verdade absoluta, da colagem imaginária aos mestres. Esse aspecto levantado por Lacan é relevante para pensar que nessa colagem que ocorreu com o grupo coordenado por Freud, muitos eram seguidores de um mestre, participavam das discussões no sentido de reafirmar as ideias do mestre, de maneira que os membros do grupo colocavam Freud em um lugar de profeta, estabelecendo, assim, uma relação de cunho “teológico”.
Segundo Gay (2001), o objetivo inicial de Freud era estabelecer discussões inspiradoras com seus colegas, na busca de reproduzir a experiência frutífera que tivera com Fliess, o que se pode considerar que, para Freud, os participantes do grupo eram “substitutos” de Fliess. Freud busca no grupo encontrar interlocutores como Fliess, no entanto, não foi o que aconteceu. No início, as discussões eram harmoniosas, mas, com o passar do tempo, a agressividade passou a ser o tom dos encontros. Isso permite concluir que, como no caso Dora, Freud não conseguiu manejar a transferência estabelecida no grupo de trabalho, não conseguiu encaminhar a agressividade para a produção.
Lacan, visando a romper com esse tipo de relação que, segundo ele, não promoveria a construção de saber, mas a mera reprodução, propõe como um dos dispositivos da sua escola, o cartel, dispositivo para a transmissão da psicanálise já apresentado nesta tese.
Neste momento, considero pertinente tratar da função do elemento mais-um na produção do texto acadêmico por considerar a função do orientador como o mais-um. Na perspectiva de uma universidade descompleta, ideia apresentada no capítulo anterior, é possível considerar a transposição da produção do cartel na psicanálise para a produção do texto acadêmico.
A proposta de funcionamento do cartel está referenciada no entendimento de Lacan das relações estabelecidas no grupo. O funcionamento do grupo é marcado por fenômenos imaginários. Esse fato pode representar um obstáculo à elaboração de um trabalho intelectual. Não é de se estranhar o estreitamento do laço que se estabelece entre seus membros. O estudo em cartéis está enlaçado na transferência de trabalho, uma vez que as pessoas se reúnem para discutir a partir de um tema comum, ocorrendo, então, a identificação com uma questão, que culminaria, assim, na construção de um texto próprio. O objetivo, portanto, é resolver um problema, um enigma.
A identificação por uma questão e a busca pelo mais-um marcam um lugar diferente do de líder. O pedido é dirigido a alguém que o grupo supõe possuir um saber acerca do tema. Importante salientar que essa busca não é da ordem de um ensino, mas de um desejo de desvendar a questão com a qual o grupo se encontra transferenciado. Isso remete à discussão sobre a transferência de trabalho, na qual se verifica: primeiro, que o surgimento do desejo de saber se evidencia no aprofundamento das questões suscitadas nos próprios textos estudados e sua relação com a prática; segundo, no desejo de colocar em discussão aquilo que se está pensando.
O mais-um, portanto, “será encarregado de velar pelos efeitos internos do empreendimento e de provocar sua elaboração” (QUINET, 2009, p. 85). Levando para o campo da orientação, vê-se que a tarefa do orientador é fazer com que o orientando produza um trabalho pessoal ao invés de permanecer em uma posição de fazer o que imagina que o outro queira.
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Trecho do doutorado: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-12062012-145715/pt-br.php