O Social em Lacan
- Karen Tavares
- 26 de out. de 2023
- 8 min de leitura
Atualizado: 3 de abr.
São perceptíveis as mudanças que ocorreram na sociedade desde as teorizações freudianas. O final século XIX, realidade em que Freud viveu, em Viena, foi marcado por repressões e por questões morais. De lá para cá, a sociedade teve a experiência de duas grandes #guerras, o surgimento do movimento feminista, mudaram as relações entre os cônjuges e tornou-se possível o divórcio. Estes representam alguns dos acontecimentos que produziram diversos efeitos, e que se materializam na sociedade contemporânea e na constituição dos sujeitos.
Para traçar uma lógica referente a este contexto contemporâneo a partir de uma perspectiva lacaniana, faz-se necessário apresentar conceitos como o discurso capitalista, bem como, laço social, que será aprofundado no estudo de caso. Lacan (1969/1970) trabalha com o discurso capitalista em O Seminário 17, intitulado O Avesso da Psicanálise. Neste texto, o autor faz aproximações entre a teoria psicanalítica e os preceitos marxistas, que visualizavam a relação entre o senhor do capital, o trabalhador e aquilo que provinha destes, o lucro. O discurso vem para situar o sujeito, o que ele fala, a quem fala, e o mais importante, de que lugar fala.
Rosane Zétola Lustoza (2009) apresenta a aproximação feita por Lacan a Marx, em O Avesso da Psicanálise, quando põe a mais-valia marxista em consonância com o que ele institui, como mais-de-gozar, na psicanálise. A mais- valia representa o lucro, provindo da exploração da força de trabalho do operário, o dinheiro que é reinvestido no sistema, fazendo deste um processo infinito de produção. O mais-de-gozar de Lacan, se trata do gozo obtido na renuncia do próprio gozo, ou seja, essa perda de gozo que é recuperado em outro nível. Isto é, a privação ao gozo, de certo modo, já vem acompanhada pelo gozo da privação.
Lustoza (2009) faz uma investigação acerca das consequências geradas no laço social, a partir da vigência do discurso capitalista. A autora conclui que o capitalismo “desfavorece a formação do laço social”, além de promover uma ligação perversa com o Outro. Também como efeito, ela aponta para o uso do outro, o semelhante, como um instrumento, objetos de fruição, tão descartáveis quanto à mercadoria produzida.
É neste sentido que Dufour (2005) analisa a sociedade capitalista, como consumidora de coisas e de sujeitos. É importante enfatizar que, segundo Lacan (apud Dufour 2005) a sociedade contemporânea é dominada pelo discurso capitalista. Quinet (2011) afirma que o discurso capitalista produz novas relações entre os homens, sendo que o laço social não se constitui mais entre as pessoas, mas sim a relação de cada uma delas com outros objetos, objetos de consumo. Este modelo capitalista leva o sujeito a uma insaciável demanda de consumo, colocando- o em uma dívida eterna, em busca de um objeto totalizante e impossível. Quinet (2011) diz que a contemporaneidade trata-se de um discurso sem lei e que foraclui a castração. Dufour (2005) se remete ao atual momento da sociedade, a pós- modernidade, com o capitalismo a serviço de “reduzir cabeças”, produzindo um novo sujeito, que não é nem o crítico kantiano nem o neurótico freudiano.
Neste sentido, observa-se que há mudanças no social no decorrer do tempo, pois deixa de ser uma sociedade simbolizada, organizada por uma lei, para tornar-se uma sociedade horizontal, sem referências. Antes, organizada verticalmente, fundada em uma referência paterna, legitimada por uma lei e um pai que faz determinações, para agora se tornar uma sociedade dessimbolizada, formada por iguais. Com este novo parâmetro, não há quem marque a diferença, quem faça as delimitações, e por isto, não se pode mais tomar como verdade as considerações que se tinha sobre o sujeito no tempo freudiano, por exemplo.
Melman (2003) diz que o discurso capitalista produz no sujeito uma nova economia psíquica, ou seja, um novo sujeito, com um novo modo de subjetivação. O autor considera que atualmente o sujeito não busca um reconhecimento no Outro, mas no seu semelhante; um reconhecimento midiático, público, que nunca é adquirido de modo definitivo. Nesse sentido, nota-se que esta condição subjetiva do novo sujeito se encontra em “estado limite entre neurose e psicose que doravante se define o sujeito pós-moderno” (DUFOUR, 2005, 92). O sujeito está em um mundo sem limite, dessimbolizado, e sendo assim, Dufour (2005) aponta um favorecimento à passagem ao ato, num estado limítrofe, um sujeito precário, acrítico e psicotizante. Neste processo psicótico, o grande Outro está foracluído, não é tomado como uma referência, fica fora do discurso, deixando o sujeito à margem do laço social.
Para compreender a relação do sujeito com o grande Outro, é preciso partir da teorização lacaniana acerca dos três registros, a saber: o real, o simbólico e o imaginário. Estes termos surgem em contraposição à teoria freudiana da tríade: id,supereu e eu. Kaufmann (1996) retoma Lacan para definir estes conceitos, considerando que estes formam uma categoria, sendo assim, estão fundamentados na “estrutura originária do aparelho psíquico: o imaginário na organização do estádio do espelho, o simbólico na cadeia significante, o real na impossibilidade (lógica) da relação sexual” (KAUFMANN, 1996, p. 474). Kaufmann determina que o imaginário se caracteriza por sua consistência, o real pela sua existência e o simbólico por sua insistência. Os autores Carla Tavares, Cláudio Mazur, Eduardo Bertolini e Laurette Ribero (2007) sustentam que o real escapa do simbólico. O simbólico é a instância que organiza os significantes e, o imaginário se refere ao que se vê ou o que se pensa ver dos objetos.
Tavares et al (2007) afirmam que Lacan reelaborou entre os anos de 1969 e 1972 a articulação entre estes registros, utilizando-se do nó borromeano. Os autores afirmam que por não ser captado pelo simbólico, o real não pode ser nomeado e nem representado, pois está além desta compreensão. De Lacan, Kaufmann (1996) conceitua o registro do real enquanto impossível, sendo assim, sua posição tópica se encontra ex-sistente, ou seja, situada fora, fora do campo demarcável. Sendo entendida a partir da impossibilidade da relação sexual, manifestada pela angústia de castração. Chemama (1995) aponta que o real só pode ser definido a partir da relação com o simbólico e o imaginário, pois não é passível de ser simbolizado nem na palavra e nem na escrita.
Quanto ao simbólico, Kaufmann (1996) retoma o preceito freudiano, de que o sujeito, é o sujeito do inconsciente, aquele que fala. Em Lacan isto significa que está “mais além do ego” (KAUFMANN, 1996, p.475), ou seja, compreende-se que este sujeito está inserido na linguagem e, portanto, no simbólico. Tomando a leitura que Lacan faz de Freud, o inconsciente é formado de uma cadeia de significantes, logo, esta cadeia de significantes representa o simbólico do sujeito. Chemama (1995) afirma que, o simbólico está ligado a função da linguagem, de modo mais específico, o significante. É a partir do simbólico que o ser humano se constitui, determinando como este se vincula socialmente e suas escolhas, inclusive sexuais.
Já no que diz respeito ao imaginário, Lacan (1972, apud Kaufmann, 1996) afirma que há um avanço na compreensão de imaginário. Antes, em Freud, entendido como uma irrealidade do objeto, o imaginário passa a ser “representante da incompletude do sujeito” (KAUFMANN, 1996, p. 263). O imaginário se presentifica enquanto uma falta, que é constitutiva do sujeito, na medida em que, ele é sujeito de um corte na cadeia significante, um sujeito castrado. “O imaginário encontrará seu paradigma no efeito de espelho – o um do dois – cuja borda nos daria uma ilustração, ilustração que a pulsão de Lacan retoma, justamente na medida em que ela é experiência de borda” (KAUFMANN, 1996, p. 264). Chemama (1995) conceitua o imaginário a partir da imagem, da identificação com a imagem, de um ideal. Deste modo, o autor indica que na relação intersubjetiva, é introduzido pelo sujeito algo fictício, projeção imaginária, um registro do eu, com aquilo que ele comporta de desconhecimento, alienação, amor e agressividade na relação dual.
Estes registros dão contorno ao que é a relação do sujeito com o grande Outro, o lugar que este ocupa, pois a hipótese que vem se desenvolvendo que não é uma relação simbólica. Esta ilusão de igualdade, de horizontalidade, pregada atualmente no social, é de ordem imaginária. Sendo assim, sobre este sujeito dessimbolizado, faz-se referência a Jorge Forbes que fala em homem desbussolado, ou seja, sem um norte, sem uma referência simbólica. Forbes (2004) explicita que homem desbussolado é o habitante da era da globalização, que vem sendo considerada a pós-modernidade, caracterizada por não ser “pai-orientada”. O pai era o representante e dava a direção, e sem essa referência paterna, o homem ficou desbussolado/dessimbolizado, e por isso, sem pai, sem norte, sem bússola.
Isto implica, segundo Dufour (2005) que o sujeito não faz mais trocas simbólicas, todavia, as trocas dizem de valores mercadológicos e monetários, em consequência disto, se dá a dessimbolização do mundo. Este autor ainda afirma que “em suma, levanto a hipótese de que esse novo estado de capitalismo é o melhor produtor do sujeito esquizóide, esse da pós-modernidade” (DUFOUR, 2005, 21). Segundo o autor, a violência, a explosão da delinquência, o individualismo, o exibicionismo das aparências, a desinstitucionalização da família, entre outras tantas características da sociedade atual, são significativos sintomas da mutação da modernidade. Estes sintomas tornam-se presentes também no contexto escolar pesquisado no estudo de caso, que será mais detalhadamente analisado neste trabalho. Como por exemplo, a falta de limites, a dificuldade de sustentar a autoridade, a lacuna na delimitação dos lugares de cada sujeito integrante da escola.
A pós-modernidade, segundo o autor, está calcada na perda de referências, porque o sujeito, não se assujeita mais ao grande Outro, pois este se encontra em declínio. Dufour (2005) teoriza que “estes sujeitos se estilhaçam porque nenhuma figura do Outro, mais nenhum grande Sujeito vale verdadeiramente na nossa pós- modernidade” (2005, p.58). O Outro não tem mais o prestígio necessário para se impor e, por isto está em declínio, mesmo sem deixar de existir. Desse modo, para o autor, na pós-modernidade, não há Outro simbólico, no qual o sujeito possa demandar, perguntar ou contestar. Melman (2003) também pondera o declínio deste Outro, afirmando que o encargo do sujeito é se manter na corrida pelo gozo, onde o desejo não é recalcado e as manifestações do gozo dominam. O autor sustenta que o sujeito não busca uma singularidade, mas uma identificação coletiva, que por sua vez, é imaginária.
O liberalismo econômico produz a dissolução do laço social. Forbes (2004) afirma que na modernidade, a sociedade estava organizada de modo vertical, isto é, simbolizado. O autor exemplifica esta verticalização através da família, que possuía pátrio poder e a nação, pela qual, havia sentimento de Pátria. Em contraponto, pensa-se que atualmente vive-se um social horizontal, onde a igualdade é o ideal a ser atingido, em que ninguém assume esse lugar de lei. Lustoza (2009) aponta que a singularidade do sujeito está desaparecendo, as diferenças são apagadas e a homogeneidade do mundo vem sendo destacada. Em consequência disto, Quinet (2007, apud Lustoza 2009) pondera que o discurso capitalista além de não promover o laço social, produz um autismo e, estimula uma ilusão de completude. Em decorrência disto, Lustoza (2009) afirma que já não nos dirigimos ao Outro (LUSTOZA, 2009, p.51).
Lebrun (2004) indica que o sujeito pós-moderno tem uma perda de referência por causa do simbólico abastardado, pois a função paterna está deslegitimada, não está sustentada na família. “O convite a não-realização do simbólico, a sua manutenção no virtual, equivale a preconizar um retorno à imediatez, ao ”direto”, às palavras-ato, a rejeitar a representação” (LEBRUN, 2004, 166). Rejeitando a representação, rejeita também a simbolização e a interdição paterna, o sujeito não se assujeita a este grande Outro. Neste sentido, para compreender os efeitos destas transformações sociais na subjetivação e do processo de dessimbolização, é fundamental apresentar como a psicanálise entende a constituição do sujeito, de Freud à Lacan, situando aquilo que já se avançou na teoria.
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Autora: Karen Graziele Tavares
Graduada em Psicologia, em formação em psicanálise, Mestrada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP, Coordenadora do Núcleo Psicanálise e Educação do Espaço Clínico e de Estudos Psicanalíticos – ECEP – Três de Maio/RS, Integrante da Equipe Interdisciplinar da Secretaria Municipal de Educação – EISME – Horizontina/RS.
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