Potencial transformador da psicanálise na educação
- Karen Graziele Tavares
- 29 de jul. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 3 de abr.
Neste escrito proponho algumas reflexões acerca da psicanálise inserida em outros campos de saber, enfocando a educação, devido a minha experiência profissional e pesquisa. Sendo assim, abordarei questões referentes a entrada da psicanálise no campo da educação, o caráter transdisciplinar desse campo teórico, tendo em vista que, quando se fala em psicanálise em instituições, falamos também na sua concepção inicial interdisciplinar, proposta por Freud e, mais recentemente, as discussões a respeito da transdisciplinaridade e a necessidade de diálogo com profissionais das mais diversas áreas de conhecimento. E, por fim, dos efeitos da inserção do psicanalista em instituições de ensino.
Ao fundar a psicanálise, Freud convocou saberes de diversas naturezas estabelecendo relações com a física, química, biologia, medicina, artes, educação, linguística, antropologia, etc (COUTINHO; FONTELES, 2019). Ou seja, desde sua concepção a psicanálise tem caráter interdisciplinar e, desde o princípio, Freud se interessou em apresentar a psicanálise tanto em conferências para médicos, quanto para leigos. E como sugere, ao chamar a psicanálise de metapsicologia, foi além ao sustentar o dinamismo desse campo teórico afirmando que:
“nunca nos vangloriamos da inteireza e do acabamento definitivo de nosso conhecimento e de nossa capacidade. Estamos tão prontos agora, como estávamos antes, a admitir as imperfeições da nossa compreensão, a aprender novas coisas e a alterar nossos métodos de qualquer forma que os possa melhorar” (FREUD, 1919[1918], p. 173).
Essa asserção implica que psicanalistas avancem na construção da psicanálise, na compreensão e atualização dos conceitos a partir de cada época, como fez Lacan em seus seminários. Isso possibilita que a psicanálise siga sempre atual e também permite que psicanalistas trabalhem nas mais diversas instituições nas quais se disponham a ocupar. E ocupar esses lugares exige um diálogo transdisciplinar.
Coutinho e Fonteles (2019) resgatam autores que discutem os conceitos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Para Piaget (1972), interdisciplinaridade é a integração recíproca entre as disciplinas, produzindo enriquecimento mútuo (IBIDEM). Já Nicolescu (2013) compreende a interdisciplina como transferência de métodos de uma disciplina a outra, ao passo que a transdisciplina resulta da leitura “compreensiva e holística do mundo contemporâneo e implica a presença de vários níveis de realidade” (IBIDEM). Ou seja, “uma visão transdisciplinar conduz a uma mudança de atitude e perspectiva, sem abdicar, contudo, do conhecimento e da expertise disciplinar” (COUTINHO; FONTELES, 2019).
Significa dizer que há espaço para sustentar a singularidade das intervenções de cada profissional da instituição, sem que todos eles trabalhem a partir da mesma perspectiva. Ou seja, o professor não precisa de conceitos psicanalíticos para desempenhar sua função de educador, porém, um analista dentro do espaço escolar pode promover intervenções que desvelam o sujeito inconsciente que permitam compreender o sujeito aluno como um todo, em que sua história, seus desejos, seu corpo estejam em jogo no processo de aprender, assim como o sujeito professor. É pelos efeitos das intervenções e dos discursos que a psicanálise mantém seu espaço dentro do campo da educação.
Cabe ressaltar que Freud produziu muitos textos e proferiu conferências nas quais previa a entrada da psicanálise em diversos campos de saber e instituições, entre elas a saúde pública e educação (FREUD 1913, (1919 [1918]¹, 1919², 1925). Porém, essa inserção não significa uma mera interlocução dos campos, Leandro de Lajonquière (2017, apud MOURÃO, 2021) assevera “que não cabe à psicanálise nem definir os parâmetros de uma educação ideal nem vir a se colocar perante a educação como a razão de ser de um laço social a ser emulado em maior ou menor medida” (IBIDEM, p. 44). Isso significa que a psicanálise tem contribuições acerca da educação devido seus estudos sobre os sujeitos e seu inconsciente que causa efeitos nas relações e dentro das instituições, porém não determina o que faz a educação.
“Os destinos da psicanálise no campo educativo são complexos, controversos e não lineares. Em outras palavras, os caminhos tecidos no campo educativo não ocorreram a partir de uma lógica linear e mecânica, já que aqueles que se lançaram a aplicar as premissas psicanalíticas para terrenos não clínicos teceram reflexões dissímeis e não congruentes” (IBIDEM, p. 44).
A complexidade também está no impossível da psicanálise e da educação. Freud (1919) considera que curar, educar e governar são três profissões impossíveis, o que não impossibilita tais atos, porém, requer reconhecer que a palavra “escapa ao falante. Ao falar, um politico ou um educador estará também fadado a se perder, a revelar-se, a ir na direção contraria aquela que seu eu havia determinado” (Kupfer, 1989 apud FANIZZI, 2018, p. 105). Ou seja, há uma impossibilidade de controle dos efeitos das palavras proferidas e das intervenções.
Na contramão da psicologia escolar, em que as práticas mais costumeiras dos psicólogos junto às escolas, segundo Patto (2002) são apenas “uma versão vulgar, esquemática e simplificada em fórmulas presentes em interpretações de testes de personalidade e em laudos psicológicos que patologizam alunos que não correspondem às expectativas escolares de trabalho e obediência” (Patto, 2002, apud FANIZZI, p. 24), o discurso psicanalítico leva em conta as produções subjetivas do sujeito e de seu desejo. Contudo, entre a psicanálise e a educação há um ponto em comum, mas que também é controverso: a palavra. Desse modo,
“a educação realiza-se e exerce seu poder na linguagem, o que a faz estar inserida e submetida a lógica que rege o campo da palavra. A psicanálise e a realidade do inconsciente nos mostram que o movimento é inerente ao estatuto da palavra e seu significado não é estático, tampouco previsível” (FANIZZI, 2018, p. 105).
Cristina Kupfer (2007) ressalta que a contradição entre estes campos que reside justamente na dimensão que a palavra toma no seio dos processos educativos que é diferente da que ocupa na teoria psicanalítica (IDEM, apud MOURÃO, 2021, p. 47). De acordo com a autora
“A Educação exerce seu poder através da palavra. Seus esforços concentram-se na tentativa de estimular, pelo discurso dirigido à consciência, os indivíduos a se conduzirem em uma direção por ela própria determinada. […] No entanto, a realidade do inconsciente ensina, como já foi dito, que a palavra escapa ao falante. Ao falar, um politico ou um educador estará também fadado a se perder, a revelar-se, a ir na direção contrária àquela que seu eu havia determinado. A palavra com a qual esperava submeter. acaba, na verdade, por submetê-lo à realidade de seu próprio desejo inconsciente” (IBIDEM).
Segundo Fanizzi (2018) “o discurso (psico)pedagógico hegemônico parece acreditar e pretender a educação como algo absoluto, na qual não haveria furos ou a possibilidade de se revelar a falta que precisamente a anima, a causa” (IBIDEM, p. 103). Por outro lado, os psicanalistas sabem de antemão a imprevisibilidade dos efeitos de suas intervenções. A psicanálise contribui na construção de uma “práxis, uma vez que é construída dialeticamente no ato educativo – trabalha no campo do aberto, do indeterminado –, reserva ao professor um lugar de um sujeito de enunciação (IBIDEM, p. 103).
CONCLUSÃO
O caráter inter e transdisciplinar da psicanálise favoreceu a sua entrada nas mais diversas instituições e, consequentemente a produção de efeitos tanto nos discursos, quanto nas relações dos sujeitos envolvidos. A educação é um campo em que as relações estabelecidas pelo professor e aluno são fundamentais para que o ato educativo seja de possível acontecimento.
Muitos psicanalistas têm se ocupado de pesquisar e atuar no campo da educação promovendo interlocuções e a construção de uma práxis. Fanizzi (2018) afirma que “opondo-se sistematicamente à ideia de educação como uma estimulação metódica, estudos de psicanálise na educação elucidam ser fundamental ao ato educativo a possibilidade de emergência e movimentação dos sujeitos dentro do discurso” (IBIDEM, p. 106). Segundo a autora o educador é “o outro – aquele que se põe a transmitir marcas – deve revelar-se como um outro que testemunha a falta”. Ou seja, o professor transmite não apenas conceitos, mas a sua experiência enquanto sujeito.
Em tempos de uma busca incessante para o método mais eficaz, de medicações que sujeitem o corpo orgânico e de diagnósticos que nomeiem as singularidades, acaba que “o professor ‘não tem mais nada a ver com isto’, no duplo sentido que essa expressão indica: o de desresponsabilização e o de impotência” (Guarido, Voltolini, 2009, apud FANIZZI, 2018). E, no sentido de retomar esse lugar de produção de marcas e de aprendizagens que psicanalistas têm se aventurado a evidenciar as potencialidades e efeitos dos laços estabelecidos entre os sujeitos e da dupla afetação entre professor e aluno, psicanálise e educação.
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