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Sobre a crise na Educação

Atualizado: 3 de abr.



Diante de tantas demandas e possibilidades, fica evidente que há uma crise que causa uma afetação na educação e nos sujeitos nela envolvidos. Hannah Arendt (2011) fala em crise na educação referindo-se ao processo educativo norte-americano, mas é possível notar ressonâncias de suas reflexões de modo mais amplo no sistema escolar como um todo. Sobre essa crise, autora afirma que “é de fato tentador considerá-la como um fenômeno local e sem conexão com as questões principais do século” (ARENDT, 2011, p. 222). O que se pode inferir é que cada cultura lida com a questão da educação de forma particular, fazendo com que cada local vivencie essas situações de maneira muito singular, especialmente em sua tentativa de resolução.


A filósofa continua: “uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão” (ARENDT, 2011, p. 223). Nosso sistema educacional, e trago aqui como referência o sistema onde estou inserida, reproduz uma sociedade com vários preconceitos. Estes preconceitos repercutem em falas já obsoletas, mas que ainda reverberam, tais como referir-se às causas de problemas de sala de aula a uma família “desestruturada”. Além disso, culpabilizam também a cultura familiar, o lugar em que residem, a condição econômica, para tentar justificar o mal-estar provocado pelo aluno que não se submete ao discurso do professor e não acata suas determinações. Queixam-se da vulnerabilidade social, da dificuldade de acesso a bens e materiais, porém não tratam como um problema social complexo, apenas como meio de amparar-se frente a um aluno que não aprende. Quando não apontam problemas psíquicos, emocionais ou orgânicos. Porém não se ouve falar em como se dá a relação em sala de aula entre aluno e professor, como o professor se posiciona em diante de sua função de educador, como se dispõe a atender o aluno a partir de sua singularidade. Segundo Manonni (1988), determina-se que a criança se submeta às exigências e aos estereótipos de um código, um ritual de boa conduta, que define os papeis a serem desempenhados.


O que reforça a postura da autora em indicar que é o temperamento político do país, ou dos países, para tornar a questão mais geral, que insiste em “igualar ou apagar tanto quanto possível as diferenças entre jovens e velhos, entre os dotados e pouco dotados, entre crianças e adultos e, particularmente, entre alunos e professores” (ARENDT, 2011, p. 229). Isso reacende outro debate, de que a aprendizagem pode ser igualada entre os aprendizes e, como consequência de tantos emparelhamentos, o professor deixa de exercer a sua diferença.


Em termos psicanalíticos, poderíamos pensar essa diferenciação e autoridade com a função paterna. De certa forma, os professores transitam entre as funções materna e paterna, no entanto, para ocupar lugar de quem educa, não pode abrir mão desta função que funda a entrada do sujeito no social, que é a função paterna.


Deixando de fazer isto, abre caminho para o que Arendt (2011) sugere como crise da autoridade na educação que se dá por uma conexão com a crise da tradição, da nossa atitude com o passado. Ela pondera que o problema da educação no mundo moderno: “está no fato de, por sua natureza, não poder abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição” (ARENDT, 2011, p. 245).


A minha experiência tem demonstrado que, há uma crescente dependência da educação ao que dizem outros profissionais. Desde que foi constituída a equipe interdisciplinar com profissionais da saúde e psicopedagogo, com vistas a dar um suporte aos professores, alunos e familiares, houve um esvaziamento progressivo da função ocupada pelo professor. Isso porque, ao menor sinal de dificuldade encontrado em sala de aula, professores apressam-se em se queixar para a equipe diretiva, para a coordenação pedagógica ou para a equipe interdisciplinar a fim de cessar o problema.


No entanto, a escola tem uma função social significativa: a de enlaçar o sujeito. Isto é, que ele possa circular no laço social e fazer suas experiências, para tanto, ele precisa, como condição, abrir mão de parte de seu narcisismo, para fazer parte da civilização. Isso requer desalienar-se do desejo do outro para fundar-se sujeito desejante para ter autonomia e usufruir de sua singularidade no espaço social. Isso é o que Freud (1930) propõe no texto “Mal-estar na civilização”, onde aponta que o mal-estar provocado no sujeito pela cultura, reside na frustração que lhe é imposta para viver em comunidade, relegando a felicidade individual ao segundo plano, sendo possível usufruir apenas de uma satisfação parcial de seus desejos.


Ou seja, o mal-estar é inerente às relações humanas. O problema que acontece dentro de sala de aula, faz parte do jogo, do ato de educar. Todavia, para o professor, a causa está sempre fora da sala de aula e deve ser resolvida prontamente, e mais, quem precisa resolver é o outro. No discurso de um número significativo de professores é o profissional de áreas específicas que vão dar conta dessa falha, da falha de comunicação que acontece entre professor e aluno e que eles esperam perfeita, porém nunca é e nunca será.


Não está contabilizado por estes profissionais a falta. O aluno esperado é o ideal, mesmo sabendo que esse ideal não existe, ele ainda é buscado até as últimas consequências, como por exemplo, um corpo silenciado por um psicotrópico. Então, chama-se os pais, no intuito de que eles imponham limites para os seus filhos, pois estes estudantes estão dificultando o trabalho do professor, também se usa como argumento que o aluno acaba atrapalhando a experiência de aprendizagem dos colegas. Ele atrapalha planos predeterminados e alguém precisa solucioná-los para que a escola atinja diversas metas.


Para o sistema importa que o número de reprovações diminua e, por conseguinte, diminuam também as distorções de idade e série, posto que a redução desses números seria a prova de que a educação brasileira está avançando e tendo resultados satisfatórios e que o método praticado está funcionando. Embora, saibamos que tanto não está funcionando e que os números não condizem com a realidade escolar, porque esses dados são fictícios e mascaram o que vem se produzindo na educação.


O funcionamento desse sistema estimula a desresponsabilização e a desautorização por uma parcela significativa de profissionais da educação, sejam eles professores ou gestores e isto tem agravado a crise. Os projetos das escolas e os métodos têm levado a crer que o ato educativo pudesse acontecer de forma natural, o que não é verdade. Não tem nada de natural seja na constituição do sujeito ou na educação, nada acontece por si só. A criança, desde seu nascimento, precisa de um outro que a acolha e a insira neste mundo que não faz sentido sem a inserção na linguagem pela função materna e paterna, sejam elas exercidas pelo pai, mãe, cuidador ou professor. É isso o que Hannah Arendt postulou: a educação e o sistema escolar estão em uma profunda crise.





Conclusão


Se os atendimentos não solucionam magicamente o problema posto em questão, a alternativa é encaminhar para um médico especializado em neurologia, o profissional da educação que solicita, não sabe ao certo o propósito, também não sabe exatamente o que está pedindo. Essas demandas são rasas e permeiam o discurso, o ato e o sistema escolar.


Mannoni (1998) sustenta que o professor, assim como uma mãe, pode esperar demais da criança, fazendo com que esta se esquive para não ter seu desejo destruído. “O mal-entendido mestre-aluno (que se sobrepõe com frequência no mal-entendido pai-filho) participa sempre de qualquer situação paranoica; os seus efeitos são esterilizantes ou destrutivos” (MANNONI, 1988, p. 37). No final das contas, a autora pondera que a criança precisa aprender a aprender.


E Freud (1914) no texto “Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar” faz uma correlação entre a educação e as relações estabelecidas pela criança com seus cuidadores nos primeiros anos de vida e que são expandidas e transformadas posteriormente. Segundo o autor, o processo de aprendizagem perpassa as simpatias e antipatias dirigidas à figura do professor, formando seu próprio caráter a partir deles. Reconhecendo uma ambivalência, como que numa reedição das relações familiares. Para que isto aconteça, é preciso um professor disposto a fazer laço com o aluno.


Os educadores buscam uma intervenção da área da saúde e, na limitação desta, uma medicação que cesse o problema e que faça com que eles não precisem sair de sua impessoalidade para acolher e para operar a castração com seu aluno e, nesta concepção, forma-se uma lógica onde a lei simbólica fica impedida de operar.


Com a restrição da lei simbólica a singularidade de cada sujeito também fica cerceado, não há espaço para intervenções particulares, apenas para aquelas que são dispensadas igualmente a todos. O objetivo comum a todos ganha destaque, almeja-se uma nota média a ser atingida pelo aluno, independente de sua produção. Porém, sem lei, quem não atinge o objetivo, não sofre com a perda pela reprovação, mas perde a autonomia do seu corpo e do psíquico, pois esses sintomas são tamponados de forma medicamentosa.


Busca-se uma hegemonia, a determinação de um padrão, mesmo sabendo que é impossível. Nada em uma escola é hegemônico. Então, recai-se sempre na mesma questão: cada aluno é único, é singular, apre(e)nde de diferentes formas e, tudo que é diferente, escapa do conhecimento obtido a priori. A aprendizagem e a aquisição de conhecimentos se dão no acontecimento, na experiência da educação. E para isso é fundamental dedicar tempo com aquele aluno que se demora, que se atrapalha (em sintomas, em palavras, em números, na relação com o outro) e sair da impessoalidade.


No entanto, tornar as relações impessoais parece regra. Apesar de haver uma grande preocupação com o estudante que não aprende, não presta atenção, não permanece sentado em seu lugar, o professor se vê impedido de operar o corte. Não pode reprovar, pois isso altera o índice de bons resultados da escola, pois a educação tornou-se um jogo de números. A impessoalidade na educação custa caro. Quando é assim, o professor não questiona a respeito de seu próprio fazer, da sua posição ou responsabilidade em tornar a aprendizagem um acontecimento possível.


Freud (1925) afirma que educar é uma das três profissões impossíveis, dentre elas ainda estão os atos de governar e de analisar. Deve-se considerar que esses ofícios pressupõe a existência do outro. Assim como não há análise sem analista, tampouco haverá análise sem paciente que demande alguma coisa. Não há também educação sem um aluno que enderece seu questionamento e desejo de saber ao professor.


Mas insisto em algumas questões: o que de fato se opera na relação professor-aluno, na educação? Porque o professor vem se desautorizando e perdendo sua autonomia e autoridade frente à comunidade escolar? Os sintomas apresentados pelos alunos têm alguma relação com esses sintomas do professor?


O encontro entre os sujeitos provoca mal-estar. Nas relações não há linearidade, não há ideal possível de ser alcançado e muito menos uma homogeneidade entre os seres. Em sala de aula, tantos quantos forem os alunos e professores, tantas serão as singularidades e as diferenças. Por isso, é decisivo trabalhar com as diferenças. Para isso, é preciso ter definida a função e o lugar de cada sujeito dentro do espaço escolar. Ou seja, para se fazer da escola um espaço educativo, é imprescindível pessoas que uns se autorizem a exercer a função de educador e outros se posicionem enquanto estudantes.


Ter clara a sua função implica em responsabilidade, pois quando se desempenha a função de educar, que é o que se pressupõe de um professor em sala de aula, é fundamental que este profissional esteja disponível à transferência de seus alunos, para que esses possam endereçar a ele suas questões. No entanto, vem se cristalizando uma tentativa de segurar o campo educativo e a aprendizagem no método, na forma engessada de se ensinar, como se assim fosse possível garantir o ato educativo. Contudo, anula-se o sujeito professor antes mesmo de entrar em sala de aula e fazer laços com seus alunos.


Há uma confusão entre tomar as questões profissionais no sentido da pessoalidade, com o eximir-se enquanto sujeito de sua produção, de não se reconhecer nela. Mas, antes de mais nada, precisamos reconhecer que as pessoas fazem escolhas e, necessariamente, precisam dar conta de seu desejo.


Em muitos exemplos, os professores quando instigados pelo aluno, sentem-se afrontados e desrespeitados e, em vez de pôr em jogo o que está em questão, isso que escapa, e não está previsto, eles se desestabilizam, não sabem o que fazer e não se autorizam fazer intervenções. Então, surge a necessidade de diagnósticos para justificar o que não funciona na relação professor-aluno. A partir desse ponto, é o aluno e sua família que deve buscar resolver o problema: a criança não se comporta em sala de aula como o professor deseja, ela pergunta demais ou de menos, é desatenta e não presta atenção em nada, apenas no que o colega está fazendo, não permanece em sala de aula, tem dificuldades de aprendizagens que se não provém do estado emocional, certamente pode ser corrigido de maneira medicamentosa ou explicada por um exame neurológico. Porém, essa mesma criança é capaz de passar horas jogando um único jogo no celular ininterruptamente e aprender intuitivamente como se joga, porque ali está o seu desejo.


A educação se move pelo desejo. Desejo de quem educa e de quem está ali para ser educado, para aprender, para se civilizar. Nesse sentido, entendo que para tornar possível o ato de educar um sujeito, é preciso entrar no jogo dos laços e do mal-estar provocado por eles. Ou seja, para entrar na civilização é preciso pagar o preço, sucumbir às leis sociais para que o convívio com tantas singularidades seja possível. E, o professor tem como missão apresentar e fazer com que se cumpram estas leis que regem a civilização para que o sujeito – tanto aquele que já se constituiu quanto aquele que está em vias de se constituir, dentro da instituição escolar – possa se organizar diante dessa demanda. O tamponamento de sintomas só pode causar mais sintomas, ou seja, ao invés de propor uma terceira saída, criam-se novos problemas.


REFERÊNCIAS

ARENDT, H. A crise na educação. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2011.

FREUD, S. (1914) Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar. In: Obras Completas. Volume XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

________. (1925) Prefácio a Juventude Desorientada, de Aichhorn. In: Obras Completas. Volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

________ . (1930) O mal-estar na civilização. In: Obras Completas. Volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

MANNONI, M. Educação impossível. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

PATTO, M. H. S. Introdução à psicologia escolar. São Paulo, Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda, 1997.

ROUDINESCO, E. Por que a Psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

SOUZA, M. P. R. Psicologia escolar na luta por uma atuação ético-política na educação básica. In: Concepções e proposições em Psicologia e Educação: a trajetória do Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Editora Edgard Blucher Ltda, 2017

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